Júlia Leitão de Barros: “A censura foi um instrumento político relevante para entender a longevidade do regime”
P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Censura-A construção de uma arma política do Estado Novo»?
R-O que procurei, desde o início, foi compreender qual o lugar da censura no interior da ditadura militar, e como contribuiu para a afirmação da corrente autoritária nacionalista católica, encabeçada por Salazar. A análise dos períodos de transição política constitui, a meu ver, sempre, uma oportunidade para refletir sobre quais os fatores que podem interferir na mudança política. O facto do arquivo Ephemera ter os primeiros boletins semanais, da Direcção dos Serviços de Censura, respeitantes ao ano de 1932, ano em que Salazar assume o cargo de Presidente do Conselho, em que se discute o projeto de uma nova Constituição, entre outros aspectos, foi para mim uma oportunidade de olhar o desfecho da ditadura militar sob uma perspectiva nova.
P-O papel da censura durante o Estado Novo foi apenas preventivo e vigilante ou fez parte de uma estratégia mais vasta consolidação do regime?
R- Talvez o aspeto mais relevante deste trabalho seja exactamente esse, salientar que a atividade da censura foi um instrumento político relevante para entender a longevidade do regime. A censura não visou apenas os opositores do regime, ela promoveu a desinformação, impondo uma leitura da realidade, afetando assim toda a sociedade, cultivando uma cultura do silenciamento, incentivando a despolitização.
P-O ponto de partida deste seu trabalho são os boletins semanais da censura de 1932: no período posterior, houve uma evolução dos meios utilizados?
R- A censura durou 48 anos, foi alargada a novos meios de comunicação, aperfeiçoada em termos de procedimentos, acomodando diferentes desafios resultantes de contextos históricos distintos. Não foi sempre igual, não teve sempre a mesma intensidade e eficácia. No período da guerra civil de Espanha, por exemplo, no caso da imprensa, a máquina censória foi melhorada, com a introdução de boletins de cortes diários, e de outro boletim confidencial, com recomendações aos censores, aos quais se sobrepuseram práticas de controlo de outros organismos, e destaco a intromissão do Secretariado de Propaganda Nacional, que passou também a produzir relatórios sobre a “ qualidade” do que era publicado. A história da articulação das múltiplas instituições que intervieram no campo da censura ainda está por fazer. Mas, provavelmente, uma das maiores dificuldades de estudar a censura num regime autoritário com esta longevidade, partindo apenas de documentos oficiais, é conseguir integrar na análise a vertente da autocensura, neste estudo esse obstáculo tem, no entanto, menos relevo. Uma das vantagens de analisar o ano de 1932 é que este permite aceder ao arranque da censura, num momento em que as redacções dos jornais ainda não normalizaram uma série de “proibidos” nas suas práticas.
P-Impedir o acesso a informação sobre a realidade do país parece ter sido uma das intenções do regime. No entanto, além da política, a censura abrangeu muitos outros assuntos: pode exemplificar e explicar?
R- Tentei, como já referi, responder à questão: o que andava a censura à imprensa a fazer no ano de 1932? E dei-me conta do âmbito alargado de informações que são sistematicamente cortadas nos jornais de Lisboa e do Porto, um grande número destas vinha pela mão dos “correspondentes” da “província”, como lhes chamavam, fossem eles dos grandes diários, como o Século ou o Diário de Notícias, ou dos de menor circulação, como o Voz, o Novidades ou o República. Independentemente da tendência política as referências à fome, miséria, pobreza, desemprego, corrupção, prostituição, algum incidente com uma qualquer autoridade, seja um padre, um administrador do concelho, um professor ou um médico, qualquer altercação no espaço público, conflito laboral, reclamação sobre horários, salários ou acidentes de trabalho, despedimentos, enfim, um leque muito variado de informações era cortado, retirando aos jornais a possibilidade de cobrir a atualidade do país.
P-Na sua investigação, o que mais a surpreendeu?
R- O que mais me surpreendeu foi encontrar, nas páginas dos boletins que estudei, uma sociedade portuguesa com um nível de conflitualidade política e mal-estar económico e social, que não se coaduna com a visão histórica, muito hegemónica, de um relativo consenso em torno da chegada de Salazar, o “mago” das finanças, à presidência do conselho. Fiquei convencida que a história da resistência ao autoritarismo nacionalista católico, no período da ditadura militar, exige, aos historiadores, passar a olhar com atenção para o controlo crescente do debate público por parte dos meios sociais que apoiam Salazar.
P-O Arquivo Ephemera tem dado uma contribuição muito importante para a salvaguarda da nossa memória colectiva: no âmbito do tema da censura, que outros materiais podem ou já estão a ser trabalhados por si?
R- Neste momento não estou a estudar nenhum núcleo do arquivo da Ephemera , e é de facto difícil escolher quais os materiais que podem, ou devem, ser estudados. Há no arquivo ainda muito material sobre a censura por analisar, que abarca vários meios, jornais, livros, cinema e que cobre todo o Estado Novo. Uma verdadeira “mina”.
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Júlia Leitão de Barros
Censura-A construção de uma arma política do Estado Novo
Tinta-da-China 23,90€ (Colecção Ephemera)