Maalouf: “Nenhuma causa é justa quando se alia à morte.”
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
O título obriga à compra. Samarcanda faz sonhar: é Corto Maltese, Oriente longínquo, tesouros e véus, árabes e persas, mil e tantas noites. A nossa escrita é filha dos árabes, lá voltaremos quem sabe um dia. Lembro-me desse livro que nunca li onde existe a magia do passado e do futuro.
E começa bem “No fundo do Atlântico, há um livro. É a sua história que vou contar.” E eu tenho a certeza que na casa dos meus pais existe uma cópia desse livro. Todos os sábados procuro por ele mas ainda não o encontrei. Trata-se de “Robaïyat” de Omar Khayyam. E este Samarcanda descreve a vida do sábio poeta, assim como a Pérsia e o seu futuro, no formato de Irão. E todas as complexidades associadas aos turcos, persas e árabes, com o Ocidente pelo meio, disputando as carcaças e ossadas de muitos países que não o eram.
Mas antes disso a mulher grávida que rouba amêndoas torradas ao poeta “O passeante não se admira, é uma crença antiga de Samarcanda: quando uma futura mãe encontra na rua um forasteiro que lhe agrada, ela deve ousar partilhar a sua comida, pois assim a criança será tão bela como ele.”
Por estes sítios nada permanece em paz, nem por estes nem por nenhuns onde circule humana seiva, mesmo assim, “os astrólogos proclamaram-no desde a alvorada dos tempos, e não mentiram: quatro cidades nasceram sob o signo da revolta: Samarcanda, Meca, Damasco e Palermo.”
Que as salve a poesia dando nome às suas ruas: “o que resta de uma urbe é o olhar desprendido que sobre ela tiver pousado um poeta meio ébrio.”
Ficamos também a saber que nem só de poemas ou de vinho escreveu Omar, também dele vem a famosa incógnita matemática X, ou em árabe chay “que significa “coisa”; esta palavra, ortografada xaynas obras científicas espanholas” deu o X da incógnita.
Para logo a seguir passarmos de novo aos assuntos mundanos: “- Ainda tens o teu véu?/ – Já não tenho outro véu que não seja a noite.” E a receitas para a esterilidade “foram consultados astrólogos, curandeiros e xamãs, que lhe prescreveram que engolisse, a cada lua cheia, o prepúcio de um menino recentemente circuncidado.”
Um parêntesis para a minha colecção de coincidências: no carro, a caminho de Vila Real, ouvindo o audiolivro de A Cidade e as Serras, Zé Fernandes encontra na biblioteca de Jacinto, no 202 dos Campos Elísios, o “Guia das Ruas de Samarcanda”!
A política do passado, ou a tirania, com tantos traços em comum com a dos nossos dias “quando tiveres implantado espiões por toda a parte…os teus verdadeiros amigos de nada desconfiarão, pois sabem-se fiéis. Ao passo que os traidores se acautelarão. Tentarão subornar os informadores. Pouco a pouco, começarás a receber relatórios desfavoráveis aos teus verdadeiros amigos, favoráveis aos teus inimigos…Então o teu coração fechar-se-á aos teus amigos, os traidores ocuparão o lugar deles a teu lado.”
Ainda a política e a religião a ratificarem a barbárie “derramar o sangue deles é tão legítimo como regar o nosso jardim.”
E a resposta sábia de Khayyam “nenhuma causa é justa quando se alia à morte.”
A origem da palavra assassino, de haschichium, fumadores de haxixe, que iam “ao encontro da morte sorrindo.” Ou então seria Assassiyun, os que são fiéis ao Assass, à fé.
Hassan Sabbah, o homem que matou os filhos para dar o exemplo. Victor-Henri de Rochefort-Luçay, marquês e partidário da Comuna, pintado por Manet, “revolucionário de esquerda e direita, porta voz de cem causas contraditórias.”
“O trajecto de Paris a Constantinopla, setenta horas de comboio através de três impérios.”
As palavras de Alexandre “os meus homens combatem para vencer, os homens de Dário combatem para morrer.”
Uma tarde na Pérsia “uma refeição de frango com damascos, um vinho fresco de Xiraz, uma sesta cega na varanda do meu quarto de hotel debaixo de um guarda-sol desbotado, o rosto coberto por uma toalha molhada.”
A fechar palavras de Omar: “nenhum sultão é mais feliz do que eu, nenhum mendigo é mais triste” – o desígnio dos poetas?
“O Paraíso e o Inferno estão dentro de ti” – e ambos em maiúsculas.
E claro, o vinho: “Que seja ele tão rosado como as tuas faces/E que os meus remorsos sejam tão leves como os teus caracóis.”
E por último: “nunca me ocupei senão de coisas essenciais…viajar e ler, amar e acreditar, duvidar, combater. Escrever, algumas vezes.”
Assim todos nós.
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Amin Maalouf
Samarcanda
Marcador 18,90€