No melhor jornal cai a nódoa
Todos se queixam de tudo. Os cidadãos, claro, dos poderes, dos governos, dos patrões; os doentes, dos hospitais, dos médicos, dos enfermeiros; os trabalhadores, dos patrões, dos ricos e até, imagine-se, dos sindicatos. Não é preciso pôr mais na carta. É esse lamento generalizado que justifica, em democracia, a criação de instituições que garantam algum equilíbrio em situações mais susceptíveis de desvios, por uma razão ou outra.O instituto da defesa dos fracos pode ser consubstanciado numa só pessoa, que com a máquina mínima necessária cuidará do fiel da balança. Foi assim que a figura do «ombudsman» surgiu nos idos de setecentos, na Suécia, com o significado de «um que representa os outros», civismo puro. A figura acabou por alastrar a domínios e países diversos, Portugal estatuiu-o na Constituição da República, em democracia, para a Justiça.
Mas, em outros países, já a imprensa reconhecia a necessidade de atribuir a alguém, geralmente de fora da publicação que o contrata, a responsabilidade de constituir uma ponte entre a estrutura corporativa e os leitores. E, também, algum mecanismo de controlo/denúncia sobre excessos dos profissionais jornalistas, menos cuidado na investigação e elaboração das matérias, por vezes quebras de ética mais ou menos graves.
A emergência desta figura guardiã das «virtudes teologais» dos jornalistas não está bem clara, talvez remonte a 1922 no Japão, ou de modo mais prático poderá ter vindo, décadas mais tarde, de dois jornais americanos, nesse desiderato de fazer ponte com os leitores. Postas a necessidade e respectivas vantagens à luz do dia, muitas outras organizações foram adoptando a figura do «ombudsman», com designações apropriadas às respectivas línguas e características da missão estabelecida. Em Portugal, até pelo antecedente constitucional para a Justiça, rapidamente o «provedor» dominou o léxico.
E aí temos a curiosidade sobre o que faz, por que existe, quais os problemas que defronta o provedor. Dos vários protagonistas do cargo, em diversas publicações (imprensa, rádio e televisão) ficaram relatos, análises, exemplos da actividade desenvolvida. São casos de estudo, normalmente, para os círculos académicos ligados à investigação comunicacional, mas também para o leitor comum, que por vezes se interessa pela problemática.
O exemplo estrangeiro, para mais americano, é o que dá o sal a este «O Provedor», de alguém que se destacou pelas dificuldades enfrentadas, mas também pelo peso do jornal em que inaugurou a instância. O facto de a tradução portuguesa já ter algum tempo não lhe tira o interesse, a actualidade. Recentes casos em jornais e televisões portugueses reposicionam sistematicamente a questão no centro do debate.
Quando Daniel Okrent foi desafiado para o lugar, o jornal enfrentava algumas dificuldades de credibilidade, em resultado de práticas menos honrosas dos seus profissionais. E nesse ano de 2003 explodiria no New York Times um escândalo de plágios de outros jornais, protagonizado por um dos seus jornalistas.
As consequências levaram a uma «limpeza» na estrutura responsável, e o novo corpo directivo optou, entre outras medidas, pela contratação de um «ombudsman». Que, considere-se o cuidado de Okrent, não teria renovação, pois «não queria que algum leitor pensasse que evitava ser incisivo para obter uma opinião favorável por parte de quem fosse decidir a renovação do meu contrato».
Não foi «pêra doce», como se diz em português corrente, o provedor americano teve de defrontar dificuldades talvez inesperadas. De fora, nem todos os leitores estão de boa-fé, nestas situações; internamente, há a tendência para considerar que alguém está meter-se naquilo para que não é chamado. Mas quem aceita meter-se em apertos terá de abrir espaço de manobra. Será que Okrent conseguiu?
Para dar um exemplo, a utilização de fontes anónimas é dum dos problemas mais persistentes na prática jornalística. Mesmo jornais modernos, com livros de estilo de malha mais apertada, não conseguiram eliminar radicalmente o recurso «às fontes não identificadas» e quejandos. E a questão continua em aberto, cá como lá fora, mesmo que os provedores se revelem verdadeiros lutadores. É um livro a considerar, para se perceber o mundo dos jornais e a velha frase: «O que vem no jornal é mentira.»
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Daniel Okrent
O Provedor
Edições 70, 18,17€

