Tânia Ganho e um livro exasperante, umas vezes kafkiano, noutras maquiavélico
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
É para mim um mistério a razão de escolhermos um livro em detrimento de muitos outros que temos para lá empilhados. A capa, como podem imaginar, se teve algum papel na livraria, perde essa força nas estantes de casa. As críticas da contra-capa prefiro não as comentar.
O primeiro parágrafo.
É por aí. O primeiro capítulo também. Estou cheio de primeiros capítulos na cabeça. E o deste livro fez-me ficar – felizmente. Ou não tão felizmente, uma vez que a tristeza e a injustiça ocupam tanto espaço – cada vez mais, cada vez mais – que nos apetece gritar. Fez-me lembrar o “Terra Americana” da Jeanine Cummins que li o ano passado e era sobre (também) uma mãe e uma filha (não um filho como agora) a fugirem do mundo e a protegerem-se uma à outra quase sem esperança com tanto mal que passaram. Aqui é igual.
Uma mulher que não sabe dizer não, um homem com raiva, uma criança confusa. Um livro exasperante, umas vezes kafkiano, noutras maquiavélico, uma apneia que gera dispneia. Tanto que nos apetece agarrar nos ombros daquela mãe e abaná-la para que esqueça o ex-marido psicopata, já para não falar no murro que falta dar no energúmeno italiano.
Este é um relato do que pode acontecer e acontece a muitas mulheres neste país, mas muitas vezes é ainda pior. Se isso for possível.
E o sofrimento das crianças disputadas como troféus ou objectos mais ou menos valiosos, e a morosidade da justiça e o machismo que impera nas sociedades e instituições e grupos de ajuda e família e por vezes amigos.
É um livro de homenagem à coragem. Também é um livro de solidariedade pelos aflitos, pelos sem esperança que chegam à Europa e são maltratados. É um livro a favor dos indefesos e maltratados.
Convive-se com Anne Sexton e Sylvia Plath, duas mulheres atormentadas, quase em desesperança.
Já nas primeiras páginas é possível adivinhar o que aí vem, os sinais são claros, mas há sempre quem não veja, mesmo pessoas esclarecidas deixam-se levar, por amor, por conforto, por medo de levantar uma pedra. Mas “à distância do futuro, tudo parece um prenúncio” ou “Adriana vira os sinais — os símbolos — e decidira não lhes dar importância. Rotulara-os de excentricidades e idiossincrasias, stresse e ciúmes. Existe um rótulo complacente para tudo aquilo que queremos justificar.”
Não sou daqueles que defendem a arte como forma de combate ou instrumento de ética. Por vezes justifica-se, mas nem sempre. Neste caso, claro que sim. “Não fazia ideia de que o ódio era um monstro auto-suficiente “. Mas é, e alimenta-se de si mesmo, é auto-fágico sem perder faculdades.
É um livro fácil e difícil de ler nas suas 692 páginas. Mas deve ser lido, porque “a arte de sobreviver não passa pelo esquecimento “.
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Tânia Ganho
Apneia
Casa das Letras 22,90€