Abel Mota: “A arte como o espaço privilegiado da redenção do indivíduo”

1-O que sentiu ao receber o Prémio Literário Lions 2024?
R-Receber o Prémio Literário Lions 2024 com o romance Um Pouco Mais de Sol representou para mim o reconhecimento de um percurso literário que se empenha em explorar as tensões estéticas e existenciais na interseção entre arte e condição humana. Desde Retrato Imperfeito (2022), romance em que utilizei a pintura e a figura de Eugène Delacroix como catalisadores para investigar o cruzamento entre o belo e o horrível, o criador e a criatura, tenho afirmado a arte como o espaço privilegiado da redenção do indivíduo. Paris, que se mantém como o centro nevrálgico da ação dos meus romances, oferece o cenário ideal para a exploração das ambiguidades da experiência humana. Este prémio reafirma a relevância do meu compromisso artístico, estimulando-me a prosseguir na investigação dos limites e possibilidades da linguagem literária e da existência.

2-Que ideia esteve na base da obra Um Pouco Mais de Sol?
R-Um Pouco Mais de Sol nasce do desiderato de explorar as contradições entre fragilidade existencial e criação literária, focando-se na obra e vida de Mário de Sá-Carneiro, figura central do Modernismo português. O romance estrutura-se a partir da hipótese de expor a personagem a experiências-limite, procurando compreender a direção para onde estas a conduzem. Esta abordagem funciona como um método de investigação literária: definem-se as coordenadas essenciais do arco da personagem e, a partir daí, deixa-se que as circunstâncias se desenvolvam autonomamente, revelando as suas dinâmicas intrínsecas. Para concretizar este projeto, foi imprescindível pesquisa que incluiu a análise de correspondência pessoal (cartas familiares e trocadas com os membros da revista Orpheu), registos genealógicos, bem como a leitura crítica da obra literária de Sá-Carneiro. A obra do autor é entendida por mim não como um produto ficcional fechado, mas como expressão dos processos mentais do seu autor, particularmente evidentes na poesia, onde se refletem, na minha opinião, as várias fases da sua experiência de vida. Esta base documental e metodológica permite que o romance se afaste de uma simples cronologia biográfica, adotando uma estrutura narrativa que desconstrói a linearidade temporal, abrindo espaço para que o leitor experiencie uma abordagem mais complexa e multifacetada da vida e obra do autor-personagem. Assim, o texto conjuga investigação crítica e criação ficcional para aprofundar a reflexão sobre a fragilidade da existência e a intensidade da criação literária.

3-Descreva o projeto em que está a trabalhar agora.
R-Atualmente, desenvolvo um romance centrado numa outra figura do Modernismo português, que, tal como os meus trabalhos anteriores, se desloca de Lisboa para Paris, espaço simbólico e locus privilegiado onde as tensões artísticas e existenciais das personagens se cristalizam e ganham relevo. Este deslocamento não é um mero detalhe geográfico, mas um dispositivo narrativo fundamental para explorar o conflito entre sujeito e criação artística. A escrita literária constitui o objeto central desta obra, que parte da questão estruturante: E se, para dizer a verdade, fosse necessário mentir? Esta premissa desafia a noção de identidade estável, propondo que o sujeito é composto por múltiplas camadas de significação e por verdades fragmentárias que ultrapassam as suas versões social, familiar ou íntima. O romance investiga essas camadas, oferecendo uma reflexão complexa sobre as múltiplas dimensões da verdade e do eu. Formalmente, o romance configura-se como um exercício de fluxo de consciência, inspirado em Virginia Woolf e William Faulkner, entre outros, e desenvolve uma polifonia narrativa que alterna entre dois narradores: um em primeira pessoa, expressando a corrente de consciência, e outro em terceira pessoa, mais próximo da escrita realista. Esta estrutura permite captar a multiplicidade e a fragmentação da experiência interior, dissolvendo a forma literária tradicional para dar lugar a uma voz plural e desafiante. O projeto situa-se num diálogo crítico contínuo com a tradição literária, explorando temas como verdade/identidade, desejo e poder. Com esta obra, espero concluir uma trilogia que denomino «Escritos de Paris», na qual cada romance investiga, na intersecção entre realidade e ficção, diversas dimensões da arte, da identidade e da verdade.
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Abel Mota
Um Pouco Mais de Sol
Guerra & Paz  17€

Abel Mota na “Novos Livros” | Entrevistas

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