Ana Cristina Pereira e Joana Troni: “A dinastia de Bragança foi a mais marcante da História de Portugal”

Reinou durante quase três séculos, da Restauração de 1640 ao regicídio e implantação da República. Além de reis a Portugal, deu rainhas a Espanha e Inglaterra, mães a imperadores – e teve ainda verdadeiras “mulheres de Estado”. As historiadoras Ana Cristina Pereira e Joana Troni levantam o véu e revelam os segredos da dinastia de Bragança.

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P – Como classificar a dinastia de Bragança no conjunto da história da monarquia em Portugal?
R – A dinastia de Bragança nasce de uma casa ducal que interrompe a governação filipina e que tem de lutar para se fazer reconhecer perante o Papado e os restantes reinos, que tenta recuperar as tradições institucionais portuguesas. Os 270 anos de manutenção no trono da dinastia de Bragança, de 1640 a 1910, revestem-na de particular importância: dela nasceram uma rainha de Inglaterra, uma rainha de Espanha, mães de imperadores, e pelas várias alianças matrimoniais a Casa Real Portuguesa contraiu laços de parentesco com as mais importantes famílias reais europeias. Foi, sem dúvida, uma dinastia marcante na História de Portugal.

P – Quais as diferenças entre a corte portuguesa e as europeias, nomeadamente as espanhola e francesa, as mais próximas? Os contactos com o estrangeiro, pelas mais diversas razões – de casamentos a conflitos, por exemplo – fizeram mudar alguma coisa?
R – Os estrangeiros que visitavam a corte portuguesa descreviam-na como monótona, cinzenta, muito cerimoniosa. As restantes cortes acabavam por ser mais permeáveis às mudanças do que a de Portugal e é isso que aparece registado nas memórias dos viajantes. A espanhola, sendo também muito marcada pela vivência religiosa, como a portuguesa, era mais magnificente, além de maior. A francesa era conhecida pela sumptuosidade, pelo fausto, pelo luxo, e era ela que ditava os gostos das cortes congéneres.
O contacto com o estrangeiro, por vezes mais do que mudar as coisas, fazia ver a diferença que existia entre as cortes. Um desses exemplos é o de D. Catarina de Bragança, que tendo crescido na corte “modesta” de D. João IV, vive quase trinta anos numa das cortes mais aparatosa e liberal. Quando, ao fim desse tempo, a rainha-viúva de Inglaterra regressa ao país natal queixa-se da monotonía, e sobretudo da rigidez da corte portuguesa e dos costumes.

P – É descrita a passagem dos “Filipes” e o rasto que deixaram na organização e funcionamento da Casa Real. Retomámos do zero, até porque, como é referido, “Lisboa deixou de ser corte”?
R – Retomou-se do zero apenas no sentido de que se queria mostrar que se estava perante uma nova corte, uma nova dinastia, a de Bragança, que era portuguesa. Recupera-se o funcionamento das instituições como o eram antes da governação filipina. No entanto, não se retoma do zero totalmente porque a casa de Bragança, enquanto casa ducal, imitava comportamentos, rituais e estruturas da Casa Real, logo acabava por ser um repositório de usos e práticas numa dimensão, contudo, menor.

P – Os casamentos, desde logo o de D. Catarina com o rei de Inglaterra ou o de D. Afonso VI com D. Maria Francisca, resultaram só de aspirações políticas ou introduziram mudanças na governação? Isso reflectia-se na vida da Casa Real e dos cortesãos?
R – Os casamentos, mais do que aspirações políticas, eram o resultado das circunstâncias e do contexto diplomático. D. João IV preferia casar a filha, D. Catarina, em França, mas não o conseguindo virou-se para Inglaterra.
Quando princesas estrangeiras vinham para Portugal através do casamento, como o caso de D. Maria Francisca, traziam com elas séquitos com naturais do seu reino. Obviamente a presença destes em Portugal acabava por ser importante, trazendo costumes, objectos e formas de viver na corte diferentes que, naturalmente, acabavam por influenciar formas de estar e gostos. Ainda na governação, acabavam por se formar grupos de pressão aos interesses dos países de origem porque estas princesas e/ou elementos dos seus séquitos eram agentes ao serviço dos seus reis, que zelavam por assuntos diversos como as relações diplomáticas que Portugal mantinha, a negociações de tratados, de paz e guerra, etc.

P – O terramoto de 1755 representou também um “terramoto” na vida da corte de D. José? O que representou a Real Barraca da Ajuda nesse contexto? Uma nova centralidade da corte?
R – O terramoto de 1755, ao causar a grande destruição que se conhece na cidade de Lisboa, mudou obviamente a corte. A família real passou a viver na Real Barraca, uma estrutura que era provisória e que não continha a mesma comodidade de antes. Tinha que reordenar e reorganizar a vida e isso terá conduzido a um período de adaptação ao qual a corte não foi alheia. Mas, ao mesmo tempo, era preciso retomar a vida de antes e rapidamente regressam as festas, os bailes e a ópera.
A Real Barraca acabou, contudo, por marcar o nascimento de um novo palácio, passando a família real e a corte a gravitar, durante algum tempo, mais em torno deste do que do da Ribeira.

P – A transferência da corte para o Brasil é um outro grave incidente no percurso da dinastia de Bragança. De que modo se reflectiu no regresso a Lisboa, tanto mais que se apresentam tempos difíceis, com os confrontos entre liberais e absolutistas?
R – A partida da Europa e a chegada ao Brasil de uma corte fortemente protocolar como era a portuguesa foi marcante em ambos os lados do Atlântico. Tudo era diferente: o clima, as gentes, o protocolo, as relações humanas e institucionais. No Rio de Janeiro, a Família Real adaptava-se à nova morada. Em Lisboa, primeiro franceses e depois ingleses continuavam a abrilhantar a cidade, que manteve o seu carácter cosmopolita. O regresso do rei a Lisboa foi feito com resistência; várias vezes as Cortes tinham chamado D. João VI a Lisboa, várias desculpas foram apresentadas para não regressar. Mas chegaria a hora do regresso inadiável. No seio da família real reinava a divisão de projectos governativos, que se acentuaram após a morte de D. João VI: de um lado, D. Pedro e D. Isabel Maria, defendendo a Carta constitucional; do outro, D. Carlota Joaquina, D. Miguel e as restantes irmãs. Reflectiam a divisão da própria Europa. De 1828 a 1834, Portugal viveu um dos períodos mais negros da sua História. Nestes anos, a vida privada foi pautada pelas andanças de uma corte nómada, pelo quotidiano das campanhas militares, mas também pelo casamento de uma princesa grávida de oito meses, da sua fuga, das constantes negociações… Como poderão constatar na leitura do nosso livro, nas Guerras Liberais correu sangue, mas também muita tinta e muitas emoções.

P – Há um ponto, a propósito da sucessão de D. João VI, que designam por “poder no feminino”. É possível detectar uma influência precisa das mulheres nestes 270 anos de governação dos “braganças”?
R – Duzentos e setenta anos é um período muito longo. De 1640 a 1910, atravessa-se um largo período cronológico, marcado por diferenças culturais, sociais, relacionais… Desde a regência de D. Luísa de Gusmão, que negociou o casamento de D. Catarina de Bragança, passo fundamental na consolidação da dinastia, até à “tutoria maternal” de D. Amélia no reinado de D. Manuel II, passando pelos reinados de D. Maria I e de D. Maria II e da regência de D. Isabel Maria, podemos falar de verdadeiras “Mulheres de Estado”, que como princesas de sangue tinham a função de reinar, de governar, de selar alianças entre Estados. Prova da importância extrema, mesmo perante o povo, destas mulheres foi, já em tempos republicanos, a vinda a Portugal da ex-rainha D. Amélia, saudada com honras de Estado e recebida por António de Oliveira Salazar. Há todo um poder feminino, formal mas também fortemente informal, que vamos descortinando ao longo de “A Vida Privada dos Bragança”. Verdadeiras teias de poder…

P – O fim da monarquia: como sintetizar o caminho para o 5 de Outubro?
R – Essa pergunta daria um novo trabalho! O período de governo de João Franco conduziu ao regicídio de D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe, mas as influências daquilo que se passava na Europa de então são notórias. Os movimentos republicanos vinham ganhando força, sucediam-se as greves, as revoltas populares. O rei, D. Manuel II era um jovem inexperiente. Não há uma razão, mas uma série de circunstâncias que conduziram à implantação da República, anunciada pelas cartas da rainha D. Amélia como uma quase certeza desde Fevereiro de 1908, desde a fraca adesão popular aos funerais de D. Carlos e de D. Luís Filipe e a grande romagem às campas dos regicidas. Todos perceberam que era uma questão de tempo.

P – É referido que o livro resulta de muitas escolhas. Qual o princípio orientador das opções de historiadoras que certamente tiveram de seleccionar entre os muitos episódios e histórias a que tiveram acesso?
R – Ambas trabalhamos Corte nos nossos percursos académicos. Tendo todo o background de conceitos, fomos conversando com várias pessoas, tentando perceber o que interessaria ao público, quais as dúvidas que surgem quando se pensa em palácios. Coisas que para nós eram dados adquiridos, como a quantidade enorme de criados e serviçais, eram praticamente desconhecidos. Partindo daí, fomos tentando mostrar como era a vida quotidiana nos palácios, quem vestia o rei e a rainha, como eram educadas as crianças, como se passava o dia da família real e dos cortesãos desde que se levantavam até ao deitar, quais os deveres e divertimentos… E à medida que a documentação nos dava mais informações, fomos diversificando as histórias, seleccionando sempre as que nos pareceram mais engraçadas e originais, desde carruagens perdidas na linha do comboio a um papagaio mal-criado. O resultado foi este trabalho, que tem sido muito bem recebido pelo público.

P – E agora, que outros projectos estão em vista?
R – Tudo no segredo dos deuses! A única coisa que podemos revelar é que o próximo trabalho continuará a ser escrito a quatro mãos e que terá o mesmo objectivo dos anteriores: pintar a História com cores mais atraentes, mostrar que, apesar de viverem no passado, homens e mulheres choravam e riam como nós, entediavam-se e divertiam-se. Porque a História de Portugal é rica, colorida, animada.
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Ana Cristina Pereira e Joana Troni
A vida privada dos Bragança
A Esfera dos Livros, 23 €