António Costa e Silva: “Sou profundamente europeísta”

1-Qual a ideia que esteve na origem do livro “Portugal na Europa e com a Europa: que Futuro”?
R-A ideia na origem do livro é fazer um balanço da minha experiência de trabalho na União Europeia enquanto ministro da Economia e do Mar do XXIII Governo Constitucional. Eu sou profundamente europeísta. O projecto europeu é o mais extraordinário projecto político do século XX e assegurou paz e estabilidade na Europa durante oito décadas. Mas o mundo mudou – e muda vertiginosamente – e o projecto europeu não se adaptou aos novos tempos. Existe um fosso tecnológico e económico que se está a cavar e a agravar entre a Europa, dum lado, e os EUA e a China de outro – e a Europa não está a ser capaz de responder. O PIB da UE, que era da mesma ordem de grandeza dos EUA em 2008, é hoje significativamente inferior. Das 20 maiores empresas tecnológicas do mundo, só uma é, actualmente, europeia. Das patentes de Inteligência Artificial que se registam no mundo, só 7% são europeias e esta tecnologia vai moldar o funcionamento da economia e das sociedades nas próximas décadas. No que concerne à fabricação de microchips – essenciais para a indústria dos computadores, automóvel e electrónica, para as indústrias espaciais e de defesa – a Europa, que produzia nos anos 90 do século passado cerca de 23% dos microchips no mundo, hoje produz menos de 7 % e a sua dependência agrava-se todos os dias. Ao mesmo tempo, algumas das grandes respostas que a Europa pode dar, como o aprofundamento do Mercado Único ou a maior integração política e a maior rapidez nos mecanismos de decisão, não só não acontecem, como existe uma apatia generalizada ao nível dos decisores políticos europeus. Estes preferem, regra geral, enveredar por procedimentos regulatórios cada vez mais excessivos em vez de se concentrarem nas questões políticas, económicas e geoestratégicas essenciais. O Mercado Único Europeu dos Serviços é incipiente e não existe. Não existe um mercado europeu de capitais. Não existe de facto um mercado europeu de energia porque a Península Ibérica continua a ser uma ilha energética separada da Europa e com as conexões entre a Espanha e França reduzidas ao mínimo, apesar de todas as proclamações em contrário.  E acresce a tudo isto que falta uma estratégia europeia integrada para lidar com estas questões essenciais. A Europa está perdida num mundo que viu o regresso da geopolítica pura e dura, dos confrontos de poder, do uso dos recursos, da tecnologia, do comércio e até das próprias cadeias logísticas e de abastecimento, como armas de competição estratégica. O meu livro é um grito de alerta sobre todas estas questões que são essenciais para o futuro da Europa – e esta, ou muda, ou vai transformar-se progressivamente num museu.

2-A Europa está, talvez, a viver o seu pior período depois da 2ª Grande Guerra: corremos o risco de o projecto europeu que parecia forte e se afirmou durante décadas se desfazer em meia dúzia de anos?
R-De facto, na complexa situação geopolítica e geoeconómica que vivemos, existe o risco da Europa se tornar irrelevante, de definhar e mesmo desaparecer. A Europa habituou-se a viver dentro do status quonum mundo previsível e com regras, e hoje as regras são violadas todos os dias. O mundo está virado do avesso e a Europa procede da mesma forma, como no passado, apertada entre uma administração americana cada vez mais coerciva e transaccional, que aumenta o proteccionismo e as guerras comerciais, e uma China cada vez mais assertiva, autocrática e tecno-nacionalista. No fundo, os quatro factores que estiveram na base da criação do projecto europeu estão todos a mudar, e a Europa não está a saber encontrar um novo caminho. Em vez da contenção do nacionalismo, o que temos hoje é o crescimento de um nacionalismo agressivo e radical corporizado no avanço da extrema-direita europeia e mundial. Em vez do reforço das democracias, o que temos hoje é a crescente fraqueza das instituições e o alastrar da desconfiança, o que pode minar as sociedades e a civilização. Em vez do crescimento do comércio livre, que é um pacificador das relações internacionais e um promotor do bem-estar e da prosperidade dos povos, o que temos hoje é o crescimento do proteccionismo e o declínio da cooperação global.  Finalmente, em vez do empenho dos EUA na aliança transatlântica e na defesa da Europa, o que temos hoje é um crescente distanciamento da América dos seus aliados e parceiros, abrindo caminho ao avanço das potências autocráticas e revisionistas da ordem internacional. Face a isto, os líderes europeus vivem prisioneiros de um quadro mental fechado e estático, desajustado das mudanças sísmicas que estão a sacudir o mundo. A consciência europeia e o sonho do projecto político europeu deram lugar a um medo paralisante de desagregação e a um desejo de salvaguardar e proteger a todo o custo o status quo. Isto é também resultado das crises sucessivas que abalaram a Europa, como a crise económica e financeira de 2008, a crise das dívidas soberanas de 2011, o Brexit em 2016, o COVID em 2020, a guerra da Ucrânia em 2022. O modo de crise tomou conta do funcionamento da UE, os líderes políticos converteram-se em gestores de curto prazo e o sonho político que galvanizou e protegeu a Europa durante décadas está a desvanecer-se.

3-Neste contexto internacional muito complexo, de que forma Portugal poderá ter um papel relevante na procura de uma solução para a Europa e para nós, portugueses?
R-Portugal deve actuar de forma multidimensional para reforçar o projecto europeu e fazer face às suas fragilidades. Enquanto ministro da Economia do XXIII Governo Constitucional, procurei lutar no Conselho de Competitividade da UE para este discutir e resolver as questões essenciais que afectam a competitividade da Europa: diminuir a burocracia excessiva da União; diminuir a quantidade inacreditável de regulamentação europeia, que asfixia as empresas, aumenta os seus custos de produção e mata a competitividade; lutar contra a fragmentação política e geoeconómica da Europa, colocando no centro a necessidade de aprofundar o Mercado Único em todas as dimensões e melhorando substancialmente os mecanismos de decisão. Ao mesmo tempo, o que fiz foi lançar no Conselho da Competitividade uma reflexão sobre as causas da falta de crescimento económico da Europa nas últimas décadas, colocando em cima da mesa a necessidade de a Europa reformular o seu modelo económico e industrial, que está obsoleto; rever todo o seu modelo de inovação, que não está a funcionar e é fraco comparado com os EUA e a China; apostar nos sectores de alta tecnologia, que geram mais valor; aumentar o envolvimento do sector privado no investimento em inovação e tecnologia; rever o sistema de incentivos; rever a política de concorrência e as excessivas protecções dos mercados nacionais; debelar a fragmentação, a desarmonização fiscal e os custos associados e eliminar o peso excessivo da regulação europeia. Acresce a tudo isto que Portugal tem um «soft power» no mundo que pode ser muito útil à Europa – a capacidade de criar e desenvolver grandes plataformas colaborativas na América Latina, em África e na Ásia. Este «soft power» é hoje importante para ajudar a Europa a equacionar soluções e respostas para este tempo, como dinamizar e explorar todo o potencial do Mercado Único Europeu; implementar rapidamente o Acordo com o Mercosul, essencial para diversificar as exportações e colmatar algumas brechas criadas pelas tarifas americanas; reaproximar-se da China para reforçar as relações comerciais e defender o comércio livre no mundo; e construir uma grande plataforma das democracias com o Reino Unido, o Canadá, o México, o Brasil, a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália, a Nova Zelândia e outros países, para defender e reforçar o comércio mundial e lutar pela estabilidade do sistema internacional.
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António Costa e Silva
Portugal na Europa e com a Europa: que futuro?
Guerra & Paz  17€

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