Eduardo Cintra Torres: “A multidão tem sido um enigma antropológico”



Eduardo Cintra Torres reflecte sobre a multidão e a televisão. Tendo por base a sua tese de doutoramento, fez uma profunda e inédita investigação sobre o conceito de multidão e, depois, parte para a ligação a um dos seus temas de eleição: a televisão.
O resultado é uma obra muito interessante que merece uma leitura atenta. 
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P – De que trata este seu livro “A Televisão e a
Multidão”?
R – A multidão tem sido, desde Platão e Aristóteles, um
enigma antropológico. É um “ser único”? Tem uma “alma colectiva”? Qual o seu
poder de representação (quem representa) e de transformação (de que é capaz)?
Desde que comecei a escrever regularmente sobre televisão, em 1996,
interroguei-me sobre este enigma “dos muitos” na relação com o media. As
audiências seriam uma “multidão à distância”? Como interage a televisão com os
muitos? Comecei a ler toda a literatura sobre a multidão. Verifiquei
que havia análises muito contraditórias, confusão conceptual, sobrevalorização
da dimensão psicológica do fenómeno e desatenção da sociologia. Decidi dedicar a minha tese de doutoramento em sociologia ao
tema da multidão, à presença da multidão na televisão e à relação entre ambas. Na primeira parte do livro, faço o que julgo ser o primeiro
levantamento em português da teoria da multidão, desde os Gregos até ao
presente. Concentrei-me na definição de multidão enquanto ajuntamento de
pessoas em espaços públicos com um objectivo. Na segunda parte, analiso em detalhe, à luz da teoria da
multidão que fui construindo e à luz das metodologias de análise de imagem,
transmissões televisivas com multidão, não apenas políticas, mas também
religiosas, musicais e desportivas.
P – De forma resumida, qual a principal ideia que espera
conseguir transmitir aos seus leitores?
R – No meu livro concluo sobre a necessidade de a sociologia
passar a incluir a multidão entre as estruturas perenes da acção humana, apesar
da sua efemeridade. A multidão sempre foi uma vontade de representação do maior
número, sempre foi um fenómeno “audiovisual”, pois pretende ser vista e ouvida.
Deste modo, a sua articulação com os media audiovisuais tornou-se uma
característica que, se tem uma verificação histórica indesmentível, é hoje
vital na sua concretização.
P – Podemos dizer que a multidão está a mudar? Dantes,
reunida em torno da televisão e, agora, à volta das redes sociais?
R – No sentido que lhe dou, prefiro usar o conceito de
multidão para pessoas reunidas fisicamente e o conceito de multitude para
pessoas concebidas como reunidas à distância pelos media, como a televisão e as
redes sociais. Julgo que há hoje uma articulação entre a multitude e a
multidão, mas a multitude das redes sociais precisa da televisão para se
consumar como representação audiovisual do maior número. As redes sociais são
insuficientes. É necessário passar depois para a reunião física, pessoas que se
exprimem pelo som e pela imagem e que necessitam da televisão para legitimar a
sua reunião. Foi o que aconteceu na Praça Tahir em 2011, no Brasil e na
Bulgária em 2013.
P – A televisão está em queda ou há sinais de que sabe e
ainda poderá retomar o seu papel?
R – Como procurei provar num outro livro (A Televisão e o
Serviço Público
, Lisboa, FFMS, 2011), considero que hoje a televisão se define
por uma linguagem própria e por conteúdos próprios, que ela autonomizou ou
inventou. Essa linguagem e esses conteúdos não são mais redutíveis nem à
tecnologia da televisão, nem aos seus constrangimentos institucionais (canais,
empresas, plataformas, etc.). A linguagem e os conteúdos televisivos estão em
todo o lado, incluindo a Internet. Influenciaram e influenciam o cinema, a
literatura, o ensino, a política, etc. O que está em queda é a televisão generalista, porque,
havendo televisão temática e outros media, não precisamos de nos prender a
conteúdos que são “demasiado” generalistas para as particularidades de cada um
de nós. Mas a televisão generalista continua a ter uma grande força, desde logo
por ser ainda o “lugar” onde o maior número se reúne à distância enquanto
multitude. E também por ser o “lugar” que melhor concretiza a apresentação da
multidão reunida, a qual se “reúne” à multitude que assiste pelo ecrã.
P – Será a Internet capaz de gerar um fenómeno semelhante e
substituir a televisão ou ambas irão coexistir?
R- Julgo que coexistirão. Mas, por enquanto, a Internet não
criou, que eu note, uma linguagem própria estável e conteúdos próprios
estáveis. A história dos outros media permite prever que o fará, pois todos
“copiaram” medias anteriores antes de se autonomizarem com linguagem e
conteúdos próprios. Por enquanto, o que mais procuramos na Internet são
conteúdos televisivos (feitos ou não para a Internet), ou jornalísticos, artísticos,
etc. A tecnologia da Internet acrescentou, com uma força extraordinária, as
capacidades de interacção e de escolhas dos indivíduos. Mas não originou algo
que substitua a televisão (isto é, a sua linguagem, os seus conteúdos), que a
torne obsoleta; acrescenta-a.
P – A multidão da era da Internet é diferente das suas
“antecessoras”?
R – Penso que há uma grande novidade em algumas multidões, a
qual resulta da interacção prévia pela Internet e telemóveis. Antes, as pessoas
reuniam-se fisicamente sob a égide de uma ideia única, ou de um pequeno número
de ideias, apresentadas por uma liderança única (um partido, uma igreja, etc.).
Hoje, há um fenómeno novo: algumas multidões conseguem reunir-se com uma
miríade de ideias; parece que cada indivíduo se junta aos outros com a sua
própria motivação (ou pelo menos agora exprime-a). Vejam-se imagens de muitas
manifestações: muitos indivíduos querem exprimir-se individualmente; enquanto
antes se colocavam debaixo de bandeirolas criadas pelos organizadores principais,
agora levam os seus próprios cartazes individuais. Há exemplos recentes deste
novo fenómeno que resulta da interacção prévia pelas redes sociais. Destaca as
manifestações da “geração à rasca”, em Portugal, 2011, e as manifestações no
Brasil, em 2013.
P – Esta situação poderá levar ao aparecimento e à
valorização de pequenas multidões fragmentadas, geradas online, sem um elemento
de liderança, sem controle?
R – Mas hoje já há, como sempre houve, um milhão de pequenas
multidões, todos os dias, em todos os países! A multidão foi e é o devir da
vontade de um conjunto de indivíduos para se mostrarem e fazerem ouvir no
espaço público. Mas a pergunta é justa, pois existem hoje, nas democracias
mediáticas, maiores possibilidade e predisposição dos indivíduos para se
reunirem em multidão. Vivemos a era da espectularidade da acção, ligada à
potência da divulgação mediática. E as redes acrescentam a facilitação das
multidões: a interacção online é o velhinho passa-palavra exponencial. A questão da liderança da multidão é complexa. Deve ser
valorizada, mas não pode iludir a real autonomia dos indivíduos na decisão de
se juntarem à multidão. O controle, numa multidão, também passa pelas decisões
de cada indivíduo a cada momento. Há multidões pacíficas, politicas, religiosas,
desportivas, musicais, que terminam em tragédia, não acontece apenas com as
multidões de revoltados. No meu livro também considero a hipótese da liderança difusa
e não necessariamente “humana”. Por exemplo, uma multidão de gente divertida
numa discoteca “obedece” a um estranho líder, a música. Isso sucede nas
multidões com bandas musicais, com a cadência das botas no desfile musical,
etc. No caso das manifestações politicas que referi acima, a liderança poderá
ser prévia e do domínio das ideias, isto é, cada indivíduo decide participar
porque quer protestar contra ou o aumento de impostos, ou o dinheiro gasto em
estádios de futebol, ou contra uma emenda constitucional, etc. Motivos
díspares, mas todos reunidos pela ideia comum do protesto e da necessidade de
mostrar pelo número, em multidão, a força dessas ideias na multitude.
P-Apesar dos avanços tecnológicos, a televisão continua a
ser um meio sem possibilidade de gerar interactividade entre os seus
espectadores. Não poderá ser essa a sua principal fraqueza? Sobretudo quando as
redes sociais potenciam ao máximo essa sensação de uma relação e de uma
partilha?
R – Sim. Mas vejo duas realidades concomitantes, uma antiga,
outra nova. Primeiro, o sentimento de partilha é independente da
interactividade: quem não sentiu ser importante ver um jogo da Selecção
Nacional de Futebol porque “todos” os outros estão a assistir em directo, isto
é, partilhando a mesma vivência em multitude? (Já confirmei esta realidade num
inquérito de opinião que realizei há alguns anos). Quem não se apercebe da
interactividade virtual que a TV encena a toda a hora (“bom dia, para si que
está aí…”). Segundo, a tecnologia tem permitido alargar a
interactividade real com os espectadores, através dos telefonemas, pagos ou
não, ou das possibilidades geradas pelas plataformas digitais.
P – Num outro plano: qual poderá ser o papel do You
Tube? 
R – O Youtube parece ter desistido para já de criar os seus
próprios canais de televisão. Mantém-se um repositório “democrático” (para
todos, mas também para governos, multinacionais e outras instituições) de
vídeos e sons. Provavelmente, o Youtube é o estádio actual da linguagem própria
da Internet. Quanto à sua dimensão social, vejo-o ligado à multitude e não à
multidão.
P – Para terminar: o controle da televisão (pelos meios que
envolve e pelos efeitos que pode provocar) foi sempre um objectivo dos vários
poderes. Com o perfil disseminador e mais democrático que as redes sociais
também representam, que alterações são expectáveis no sistema mediático?
R – Os poderes nunca desistem. A Internet e as redes sociais
estão igualmente cheias de comunicação dos vários poderes. Elas próprias são
parte de poderes, não apenas o do indivíduo por elas empoderado e da multitude.
A disseminação dos media e da nossa atenção obriga os poderes a um esforço
adicional para poder manter a sua influência. Não consigo, nem gosto de prever.
Julgo que os sinais actuais são os de uma crescente integração dos media
(incluindo as redes sociais) devido ao digital. Poucas são as experiências de
media partindo “de baixo para cima”. E quando resultam tendem a tornar-se media
institucionais, pois só eles têm capacidade de continuidade e de gestão. Mas
não há dúvida de que a potencia de democratização tem sido enorme e beneficia
os indivíduos.
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Eduardo Cintra Torres
A Multidão e a Televisão
Universidade Católica Editora, 22,20€