Fernado Pereira Marques: “Achei que “fazer a revolução” sentado à mesa do café não era a via e decidi passar à acção”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “A Arte de Ser Português”?
R-Recorrendo à expressão que utiliza, a “ideia” que esteve na origem deste livro é a mesma que me tem levado, enquanto investigador e tendo em conta a minha formação académica, a trabalhar sobre o século XX português e nomeadamente sobre o chamado Estado Novo. Só que desta feita recorrendo à primeira pessoa do singular e às minhas vivências pessoais. O que, como poderá verificar quem o leia, não significa que não tenha procurado, por um lado, ser objectivo e rigoroso e, por outro, recorrido, tanto quanto possível, a testemunhos e a documentos de arquivo. Por isso, ao escrevê-lo, lembrei-me frequentemente daquela frase de Rimbaud: “Je est un autre!”. Ou seja, estava a falar de mim, mas além de mim.

2-O livro, não sendo uma autobiografia, é a memória da resistência de uma geração?
R-Efectivamente não é uma autobiografia stricto sensu – como aliás julgo ter deixado claro na resposta à sua anterior pergunta. Como terá visto o livro divide-se em duas partes. Na primeira procuro retratar a adolescência de alguém que nasceu uns anos após o final da Segunda Guerra Mundial, vivida numa província sobre a qual continuava a pesar o fechamento salazarista, a censura e a repressão. O que, no entanto – estávamos a entrar na década de 60 – não conseguia impedir um despertar para realidades que nos chegavam apesar de todos os crivos. Tanto mais que, muito novo, tive a oportunidade de descobrir que outros mundos existiam, ao ir a França ainda só como estudante. Afinal, e nessa altura, o principal destino de dezenas de milhares de portugueses inconformados com a miséria em que viviam. Acrescendo o entrar-se numa fase decisiva e de viragem do país e do regime, marcada pelo início da guerra nas colónias. Na segunda parte, já politicamente mais consciente e incentivado por acontecimentos que vivi, como o Maio de 68, achei que “fazer a revolução” sentado à mesa do café não era a via e decidi passar à acção, com tudo o que esta decisão viria a acarretar, conforme relato. Note-se, também afloro isto, que não sendo filho de família rica aprendi cedo – inclusive em França – o que era ter de trabalhar e, nesse país, como viviam e eram tratados os emigrantes portugueses. Neste sentido, sim, ao falar de mim pretendo evocar todos os que da minha “geração” – não gosto muito desta noção – ou de gerações anteriores, de diferentes maneiras e através de diversas motivações ideológicas, recusaram o conformismo e a passividade. Refira-se, ainda, que neste livro, como em dois outros igualmente editados pela Tinta-da-china (na Colecção Ephemera dirigida pelo José Pacheco Pereira), quero contribuir para que se saiba e se conheça que houve uma resistência de gente que não se sentia iluminada pelo “Sol” que brilhava em Moscovo ou na Praça de Tiananmen, mas que ansiava pela democracia e por transformar profundamente Portugal.

3-No processo de escrita do livro, revisitou esse período: 50 anos depois, o que ainda hoje o surpreende?
R-Além de ter vivido sob Salazar e Caetano, já estudei suficientemente o regime derrubado em 25 de Abril de 1974 para ter poucas surpresas sobre a natureza do poder e da sociedade portugueses. No que se refere ao poder, havia uma elite governante de facto bem preparada para servir a oligarquia que vivia do Estado Novo e graças ao Estado Novo. Mas o modelo rentista e de exploração intensiva da força de trabalho, nas fábricas e nos campos, assentava numas classes médias e numa burocracia mediocremente escolarizadas e formadas. O que ainda ajuda a explicar muitos dos problemas actuais. Dito isto, e em especial ao consultar os arquivos referentes à fuga de Palma Inácio da prisão da PIDE no Porto (Maio de 1969), posso dizer-lhe que até certo ponto me surpreendeu o grau superlativo de incompetência e de pobreza intelectual dos homens (e mulheres) da PIDE/DGS e afins. Eram o reflexo da situação nacional e as suas principais armas foram, obviamente, os erros cometidos por quem lutava contra o regime, a arbitrariedade legal, a violência dos métodos/tortura e mecanismos como as escutas telefónicas e a intercepção do correio. Mas também, e sobretudo, o medo incrustado e cultivado, além da ignorância de uma população maioritariamente iletrada e da delação tentacular que já noutros tempos fora a grande força da “Santa Inquisição”.
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Fernando Pereira Marques
A Arte de Ser Português. Uma Aprendizagem Durante o Estado Novo
Tinta-da-China  22,90€

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