Fernanda Cachão: “Mas não são propriamente os objetos mas as histórias que eles ajudam a contar que são inusitadas”
Um regime, uma ditadura: 48 anos a marcar a história do nosso país. Fernanda Cachão foi à procura de objectos e das suas memórias. Escolheu 101 que são uma excelente amostra do Portugal de Salazar. Desde os mais óbvios a alguns até um pouco surpreendentes. Para quem viveu o regime do Estado Novo, o livro pode não trazer novidade mas contribui para reavivar as memórias de tempos sombrios. Para os mais novos, é uma leitura indispensável sobre esse passado nada glorioso: antes tacanho e obscuro. Um livro que mostra a triste realidade que durou 48 longos anos: “Os 101 objetos mostram que Portugal era em 1933 um país pobre, com uma elite pequena e uma população analfabeta e que em 1974 continuava a sê-lo”, defende a autora.
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P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro “”O Estado Novo em 101 Objectos”?
R-Este livro nasceu do convite do editor, José Prata, e foi inspirado na obra de Roger Moorhouse ‘O Terceiro Reich em 100 objetos’. Mas os livros não são, nem poderiam ser iguais. O regime de Hitler durou menos tempo, mas levou a guerra à Europa, organizou um genocídio e teve um impacto global. A ditadura mais longa da Europa Ocidental – o Estado Novo – influenciou de forma determinante o país e a vida dos portugueses, possivelmente até hoje. Acredito que muito do que somos enquanto povo teve origem na máquina da ditadura que comprimia a livre iniciativa, perpetuava mitos de grandeza ao mesmo tempo que remetia o povo à ignorância.
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“Há objetos que são inequívocos,
outros que são minha opção
porque me comoveram
ou porque ajudavam a contar
determinada história
que considerei
paradigmática do regime.”
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P-O que nos dizem estes objectos sobre o Portugal no tempo de Salazar e do Estado Novo?
R-O Estado Novo era uma ditadura corporativista, nacionalista, autoritária, anticomunista e anticapitalista, assente na figura do chefe. Os 101 objetos mostram que Portugal era em 1933 um país pobre, com uma elite pequena e uma população analfabeta e que em 1974 continuava a sê-lo. Havia menos analfabetos, mas poucos concluíam o liceu ou faziam a universidade. Nos anos sessenta continuávamos no final dos rankings de desenvolvimento humano. Quando já nenhum estado europeu tinha colónias, a economia portuguesa assentava nessa ligação histórica. Os ingleses deram a independência à Índia em 1947. As Nações Unidas defenderam uma descolonização ‘rápida e incondicional’ em 1960. Nós, no ano seguinte, fomos para Angola. Durante 13 anos, todas as famílias portuguesas tiveram alguém a combater em África. Vivemos em contraciclo.
P-Como construiu a pesquisa de que este livro: tinha um plano inicial ou foi compondo a lista de objectos?
R-Fiz uma primeira lista e depois muitas mais. Estive a fazer listas até dois meses antes de ter de entregar o manuscrito. O livro foi um puzzle que se foi construindo.
P-Dos objectos referenciados, qual o mais surpreendente e inusitado?
R-Talvez a braçadeira dos apoiantes do general Norton de Matos ou a gillette improvisada pelos presos no Tarrafal ou a carta do pide, que traduziu o livro de Christine Garnier, onde este se queixa a Salazar da ‘má língua’ de outros pides… Mas não são propriamente os objetos mas as histórias que eles ajudam a contar que são inusitadas. Quem é que imaginava que um presidente da República estivesse obrigado a mostrar os discursos a Salazar antes de os proferir em ocasiões públicas???
5-Ficaram de fora outros por falta de informação ou por opção sua?
R-Alguns terão ficado de fora. Há objetos que são inequívocos, outros que são minha opção porque me comoveram ou porque ajudavam a contar determinada história que considerei paradigmática do regime.
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Fernanda Cachão
O Estado Novo em 101 Objetos
Lua de Papel 25,90€