Ficção vs realidade?

Toda uma vida marcada por uma ambição desmedida, um desejo cego de vencer, vencer de qualquer forma, cumprindo um plano calculado ao milímetro. “A Ministra” de Miguel Real (Quidnovi, €12,95) é um ser que reúne em si as piores características tradicionalmente atribuídas aos portugueses enquanto povo: mesquinha, subserviente, invejosa, maldizente.
Desenvolvendo-se sob a forma de monólogo, a narrativa decorre em apenas dois dias – o período que medeia entre dois telefonemas: no primeiro, o chefe do executivo convida a personagem para ministra da Educação; no segundo, ela retribui a chamada para dar a sua resposta ao convite.
Entre os dois contactos – a véspera de Natal e o dia posterior –, a mulher que foi convidada para ministra descreve-se. Num diálogo consigo própria, a narradora/protagonista vai desfiando a sua vida. Filha de um atuneiro remediado e uma conquilheira, passa de um início de vida feliz em Vila Real de Santo António para uma infância sofrida em Lisboa, educada pelo tio-pai sargento da GNR e caixeiro-viajante de uma fábrica de malhas e a tia-mãe, uma dona-de-casa medíocre; seguem-se a juventude no orfanato e o curso de Sociologia na faculdade – onde constrói toda uma carreira até chegar a professora catedrática sem alguma vez ter tido, reconhece, uma única ideia original. “Nunca possuí uma ideia original, nem nunca dei uma aula original, saco as ideias de relatórios europeus e, trabalhando as estatísticas, apresento-as como próprias”. Especializou-se em Estatística e a habilidade de manipular os números acompanhará todo o seu percurso até ao final (não por acaso, a sua tese de Doutoramento intitula-se “Como manipular dados estatísticos de modo a evidenciar resultados não existentes na realidade”).
A protagonista, que os colegas apelidavam “encolhidinha da silva”, sobe na vida a pulso, sem olhar a meios para triunfar, passar à frente, conquistar, seguindo sempre a máxima ensinada pelo tio-pai: “deve correr-se na direcção para onde sopra o vento”. E o leitor vai tecendo o mapa da sua personalidade através das próprias palavras, memórias, pensamentos, até estar completo o auto-retrato: “(…) este génio teimoso e intolerante, esta necessidade de ser superior aos outros, de os manipular e humilhar.”
O livro, editado em Junho do ano passado quando o País vivia ainda o tumultuoso diferendo entre uma classe socioprofissional e o governo, não escapou à polémica de uma associação quase automática da protagonista a uma figura da política nacional, apesar de Miguel Real avisar logo no início que a personagem só existe no plano da ficção. “Transfigurá-la da ficção para a realidade e alojá-la em tal ou tal pessoa é um exercício permitido pela imaginação. Porém, esse exercício, de que só leitor será responsável, nada acrescenta à ficção. A intenção do autor foi – exclusivamente – a de desenhar ficcionalmente, como tipo literário geral, uma mulher feia, triste e de existência infeliz, e, por isso, autoritária e severa, antes de mais consigo própria, uma mulher que nunca conheceu o amor.”
E para dar mais ênfase à sua “declaração de interesses”, o autor (que é professor do ensino secundário) lembra ainda ao leitor que “A Ministra” integra-se numa tetralogia de novelas (ainda incompleta) dedicada à mulher: “‘Memórias de Branca Dias’: a mulher guerreira, ousada e bondosa, criadora de novas realidades sociais; ‘O Último Minuto na Vida de S.’: a mulher bela e intelectual, criadora de novos horizontes espirituais; ‘A Ministra’: a mulher maquiavélica, calculista, feia e má, que reduz a realidade ao cálculo dos seus interesses.”Consideremos que sim. Mas apesar de “A Ministra” valer não só como brilhantes exercícios literário e de crítica social, a colação é (quase) inevitável.
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Miguel Real
A Ministra
Quidnovi, 12,95€