Fleur Jaeggy: “Um toque de campainha e acabou tudo”
CRÓNICA
| Célia Gomes
Contemplo lentamente a capa do livro cujas amargas páginas saboreei e penso no seu controverso título «Felizes anos de castigo», escrito num fundo sépia enfeitado por um rosto escondido numa campainha. Campainha simultaneamente espia e ditadora do tempo da narradora, que na primeira pessoa narra os longos dias passados em colégios onde, interna, cresceu, foi educada ( será?!) e onde «se prolongava, quase até à demência, uma infância senil». «Campainha toca, levantamo-nos. Toca outra vez, vamos dormir. Recolhemos aos nossos quartos, vemos a vida passar pelas janelas, pelos livros, pela alternância das estações. Imaginamos o mundo. Um toque de campainha e acabou tudo». Acaba um dia sempre tudo, para a narradora e para todos nós, por isso há que avariar a nossa campainha interior ou simplesmente decorá-la com sopros e laivos de pura alegria. As campainhas, à semelhança dos sinos, sobressaltam e acordam, despertando a escritora para escrever sobre o hipócrita fardo da vida (ou melhor existência) num colégio interno, na Suíça. Talvez um livro autobiográfico para expurgar todas as dores? Dores da vida cinzenta, em lúgubre pós segunda guerra mundial, passada num edifício frio como uma morgue na companhia de «meninas defuntos» com dote e títulos nobiliárquicos. Colégio onde a protagonista, narradora, sofreu uma infância vetusta cultivando as sementes da desilusão. «O prazer do desapontamento. Não me era novo. Apreciava-o desde que tinha oito anos e era aluna interna no primeiro colégio religioso. Os anos de castigo. Há como que uma exaltação ligeira, mas constante nos anos de castigo. Nos felizes anos de castigo». Talvez seja esta frase irónica a alma do livro cujas páginas são um contínuo e longo desabafo, narrando, com pormenor e mestria a jaez das reclusas desses espaços ditos de formação feminina onde se respirava uma «espécie de promiscuidade casta», cheio de podridão e onde transborda a homossexualidade feminina. «Viam-se , pelos caminhos rapariguinhas de mãos dadas, a rirem-se, a fazerem «de amigas», a «fazerem de amantes»». Cada novata que entrava era olhada , apreciada como uma presa quer por parte das companheiras, quer por parte de professoras predadoras. Assim se passou com Frédérique, por quem a narradora se apaixonou fanaticamente, ainda que sem efusão física, e cuja relação, (com uma longevidade sombria que se prolonga para além dos muros de «Bausler Institut») serve de alimento ao leitor. «Desde o primeiro dia quis estar com ela, tornámo-nos cúmplices desdenhando todas as outras». «A professora de literatura Francesa admirava-a, talvez a considerasse uma Bronte. Queria ir ela passear com a Fréderique». Este livro antolha (servindo de grito) a acerba educação das «meninas», («Aqui, aprende-se a agradecer com um sorriso. Um sorriso maldito»), o desmoronamento do ideal de virtude. Colégios onde o mundo é uma gaiola dourada onde se cortam asas e sonhos e não se deixa voar. Onde o Universo é mudo, surdo e cego. Onde se passam diplomas para ingresso na carreira da loucura (Frédérique), da amargura, da submissão ou da perversidade. Grito este onde abundam pormenorizadas descrições e onde cada palavra é desenhada a tinta da china por Fleur Jaeggy, que sublinha a negro e sem qualquer «fleur» a realidade obscura destes antros seculares. Quando findei a leitura, sem saber se gostei ou não do que li, imaginei Paula Rego a retratar esta realidade. Com certeza saíria do seu pincel uma obra sépia tão poderosa como o quadro «Manifesto», por também também este funcionar como um manifesto. Não político, mas social. Benditas as escolas e os recintos onde se cresce com asas e se abraça o mundo como quem abraça uma multidão, sem espartilhos e sem filtros.
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Fleur Jaeggy
Felizes anos de castigo
Alfaguara 15,75€