Jacqueline Harpman incomoda mais do que que uma ervilha numa cama de princesa

CRÓNICA
| Célia Gomes
«Tudo o que sei acerca do tempo é que os dias se sucedem, sinto sono e durmo, sinto fome e como. Talvez nunca haja tempo, estando-se só? Não o percecionámos senão vendo-o passar pelos outros. (…) Se alguém falasse comigo, haveria tempo: o início e o fim do que me seria dito, o momento em que eu respondia, as palavras seguintes. A menor conversação faz nascer o tempo». São parágrafos como estes que justificam a leitura deste livro e que o elevam a uma obra com alma e vozes com as quais vale pena conversar e assim ganhar tempo perdendo-o (ou vice versa). Livro que arremessei com força para cima do sofá, quando finalizei a última página, causando espanto nos meus filhos, por nunca me terem visto «tratar mal» estes objetos de culto. Arremessei-o para me vingar da dureza que foi a sua leitura. Não pelo caro das palavras, mas pelo caro do que fica para lá das palavras e que incomoda mais do que que uma ervilha numa cama de princesa.
Uma espécie de diário, sem ser diário, narrado por uma mulher que viveu a infância aprisionada numa cave, sabe-se lá onde, na companhia de mais 39 mulheres e que não se lembra do mundo onde todos nós mecanicamente habitamos e do qual mecanicamente usufruímos.
Uma rapariga que não sabe o que é ser nem ter mãe, nem pai e que «não conheceu os homens», pois ver homens é diferente do que conhecer e ser conhecida por homens. «Éramos quarenta a viver naquela grande sala subterrânea onde nenhuma se podia ocultar das restantes. Havia um gradeamento que separava as paredes da parte onde nos encontrávamos, reservando dos quatro lados uma grande corredor para as perpétuas rondas dos guardas». Ela, que não tinha nome, ou melhor , que não se recordava dele, que não tinha memórias. Mas tinha curiosidade, reflexões e questões . E quem questiona tem fome e cada pequena resposta é um alimento. As outras mulheres iam-na nutrindo do que se lembravam , do que descreviam, do que tinham nostalgia e saudades. Não a podiam aconchegar , nem consolar os seus medos, nem tocar . Isso era proibido pelo chicote atento dos guardas.
«Todavia, estava bem ciente de que não podíamos tocar-nos e, como nunca conhecera outra coisa, considerava isso evidente. O impulso que acabara de me dominar – vontade de se refugiar nos braços de alguém – despertou em mim coisas difusas: dar a mão, caminhar enlaçada pela cintura, estreitar nos braços, estas palavras faziam parte do meu vocabulário, designavam gestos que eu nunca tinha feito».
Quando li estas palavras fiquei com uma dor no peito. Como poderia eu viver sem um afago, uma mão dada, um beijo ou um abraço? E se calhar foi com pequenas feridas como esta que Jacqueline Harpman transformou este livro em chagas e escoriações que causam sofrimento ao leitor. E como cicatrizá-las? Continuando a ler. Continuando a acompanhar a saga das 40 que conseguiram fugir após imprevista sirene que provocou a fuga dos guardas. Mulheres que se encontram presas numa “caverna de Platão” mas que que já conheceram a realidade para além das sombras projetadas na mesma caverna. Conheceram com a exceção da narradora, que só quando sobe as escadas e olha para o inóspito exterior conhece a luz do sol e o infinito do céu.
Mulheres que não reconhecem o planeta onde estão, sem casas, sem estradas, sem veículos, apenas com escassos riachos, caminho, árvores, terra e muitas mais caves semelhantes à que as aprisionou e onde encontram cadáveres, sempre quarenta cadáveres ou femininos ou masculinos. Cadáveres em putrefação. E começa o nomadismo delas. O aprender o poder do fogo, aprender a saborear um banho de riacho, a dormir ao relento, o aprender a construir cabanas. Uma espécie de viagem ao início da humanidade. A narradora com o espanto de fazer tudo pela primeira vez e as restantes trinta a reinventarem-se (quem não?!). «Viemos dum mundo onde isso não era preciso, encontrávamos as coisas todas feitas e nunca nos interrogamos sobre o modo como se faziam». Reinventaram os afetos, encontraram a música através do canto. Música que as fazia recordar (talvez seja uma das virtudes da música!). Todas unidas a caminhar por paragens incertas, mas com um destino comum: a morte. A morte a passo lento (ou não). Por isso enquanto esta não chega, ajudam-se, conhecem-se, ensinam a narradora a conhecer a vida e … a morte. Assim, esta aprende rudimentarmente a ler, a dançar sem música, a imaginar até ao limite do conhecido. «nunca consegui imaginar o som que fazia a orquestra, nem os rapazes risonhos que as tinham feito sonhar, nem os vestidos de musselina. Pouco, a pouco, fui deixando de pedir que me falassem do seu mundo. O mundo onde nunca tinha pertencido. Nunca ouvi a sua música, não vi pinturas, não conheço senão a planície pedregosa, a errância e a perda lenta da esperança, sou uma descendente estéril de uma raça da qual nada sei, nem sequer sei se desapareceu». E também prendeu a matar e a sepultar. Matar para salvar e não para castigar. Uma espécie de eutanásia para alívio de sofrimento.
«Ela acariciou-me a face enquanto eu pousava, sobre a sua pele, a ponta da faca que afiara demoradamente». E por fim, única sobrevivente naquele mundo de silêncio, aprendeu sozinha a reconhecer objetos comuns e a reconhecer-se num espelho. «Fiquei sufocada de assombro. Nunca vira nada de tão belo, porque nunca vira nada de belo que fosse obra humana». Talvez aqui mais um abanão da autora: reconhecer e valorizar. Valorizar o que temos, que é sempre muito mais do que o que precisamos. Valorizar quem temos e quem poderemos seguramente vir a ter. E mais não escrevo, porque me faltam as palavras imersas em pensamentos difusos. Como leitora atenta, apenas me restam as feridas, mas estas já em cicatrização!
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Jacqueline Harpman
Eu que não conheci os homens
Livros do Brasil 17,75€

