José António Cortez: “Compreender melhor a nossa situação actual e os desafios que hoje enfrentamos”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro “Portugal na Revolução Comercial do Século XVIII: As Reformas e as Políticas Pombalinas”?
R-Este livro é o primeiro de um conjunto de cinco que constituem uma colecção com o título “Três Séculos de Economia Portuguesa” e cuja génese resultou da reflexão feita por um conjunto de economistas que vinham colaborando com a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), tendo por base uma pergunta inicial: quais as razões do atraso multisecular do nosso país e, em especial, aquelas que nos afastaram do caminho de uma industrialização que, desde as últimas décadas do séc. XVIII até ao séc. XX, tiveram lugar na Europa.
Sendo um trabalho de economistas, a abordagem do nosso passado visava, sobretudo, ajudar-nos a compreender melhor a nossa situação actual e os desafios que hoje enfrentamos, sabendo que na história estão presentes tempos de ruptura e de disrupção, mas, também, factores de natureza estruturante que se perpetuam na longa duração.
O séc. XVIII foi o nosso ponto de partida por ser, na história da Europa e de Portugal, um momento de viragem crucial cujo impacto se projecta nos séculos seguintes. Por um lado, assistimos à consolidação de uma «economia-mundo» em que as relações entre diferentes espaços continentais se alargam e densificam, tendo como palco central o Atlântico, processo no qual Portugal foi um protagonista relevante; e, por outro, na sua segunda metade, a Revolução Industrial Inglesa que, tal como assinala  Fernand Braudel, um dos nossos grandes historiadores europeus, não pode deixar de se associar à Revolução Comercial que a antecede e suporta. Ao mesmo tempo, no nosso país, teve lugar a primeira tentativa estruturada e sustentada por um projecto minimamente integrado, visando promover uma política de fomento económico conjugando, precisamente, a actividade comercial com a industrial.
No livro “Portugal na Revolução Comercial do séc. XVIII: as Reformas e as Políticas Pombalinas”, de que sou autor, tive, desde logo, uma preocupação essencial – ausente de grande parte dos trabalhos produzidos sobre este período da nossa história – e que considero indispensável para se compreender o alcance das políticas, que foi a de olhar para o Portugal setecentista no contexto das transformações em curso à escala europeia, num tempo em que o poder das nações estava muito associado ao domínio dos mares e das economias ultramarinas.
Sendo, também, este um dos períodos mais controversos da nossa história, em que, em especial, a figura incontornável do Marquês de Pombal provoca, com frequência, sentimentos extremados, que podem desfocar o nosso olhar sobre a realidade existente, importava resistir a transformar as opiniões que expresso e procuro fundamentar, em avaliações perentórias e julgamentos simplistas que nos impedissem de ver o que de complexo este período histórico comporta. Como dizia Talleyrand, um dos mais hábeis e astutos políticos franceses (tão ou mais odiado que Pombal por muitos dos seus contemporâneos), «tudo o que é excessivo é insignificante». Não me furtei a tomar posição sobre aspectos mais controversos, nem deixei de avaliar o mérito ou o desmérito das diferentes políticas adoptadas, medindo o respectivo alcance, mas também não deixei de ter sempre presente que o conhecimento verdadeiro alimenta-se, sobretudo, de hipóteses, interrogações, dúvidas e perplexidades e que dispensa os “oráculos da verdade”, em que a contundência valorativa anda, a maioria das vezes, a par com a superficialidade ou a parcialidade da fundamentação.
Por isso, o considerar fundamental o debate, que é hoje demasiado escasso, em torno quer do que fomos enquanto país, quer do que podemos vir a ser no futuro. Este livro, procura – esse é o meu maior desejo – estimular esse debate, esperando que aqueles que o lerem se sintam motivados a intervir num saudável e estimulante confronto de ideias.

2-Como podemos resumir a economia portuguesa do Século XVIII?
R-Portugal no séc. XVIII, na classificação que nos é atribuída por Fernand Braudel, era uma «média potência» europeia, estando fortemente integrada na «economia-mundo» do seu tempo e dispondo de uma diplomacia cujas capacidade eram reconhecida pelas principais cortes europeias. Éramos sem dúvida, um país com múltiplas fragilidades, destacando-se desde logo, não dispormos de um poder militar capaz de se bater com as grandes potências europeias que disputavam o domínio dos mares e dos territórios do «novo mundo», mas com engenho e arte foram conseguindo adiar o seu impacto. Importa ter bem presente que estávamos confrontados com uma realidade muito diferente e bem mais complexa do que aquela que havíamos tido na primeira fase da expansão portuguesa, que teve lugar no séc. XV e XVI, mas penso que soubemos preservar ao longo de toda a centúria o que nos era essencial (desde logo a manutenção do Brasil), fazendo as escolhas que maiores garantias nos davam de o conseguir, onde a aliança preferencial com a Inglaterra foi um pilar essencial conjugado com o esforço por nos mantermos fora dos grandes conflitos europeus do século.
Por isso, não nos conseguimos rever no discurso, tantas vezes repetido, de um Portugal setecentista «decadente, submisso e a viver à custa do ouro do Brasil», considerando mesmo que esta é uma das grandes falsidades criadas em torno deste período da nossa história. Com maior ou menor sucesso lançaram-se e promoveram-se políticas que precisamente visaram e, em parte, conseguiram inverter o ciclo de decadência iniciado, pelo menos, dois séculos antes. Comparando o estado da nossa economia na viragem do século anterior com os anos finais do séc. XVIII, vemos que houve alterações que não podem deixar de ser valorizadas positivamente, seja em termos quantitativos (as empresas criadas e que se mantinham ou os números do nosso comércio externo), seja, e até principalmente, em termos qualitativos (qualidade de gestão e de desempenho, alinhada com uma nova cultura e com a criação de uma nova classe empresarial e com a reforma da nossa Administração Pública e do nosso sistema de ensino).
As fragilidades que persistiram vinham do passado e, nomeadamente, estavam relacionadas com a ausência de uma acumulação de capital que, o centralismo da coroa e o controle desta sobre a riqueza produzida, sempre inviabilizou. E, se antes optámos por fomentar uma economia mercantil em desfavor de uma “política de fixação” (para usarmos a consagrada expressão de António Sérgio), o constrangimento maior deu-se ao facto de ela ser protagonizada pela nobreza da corte – aquilo que V. M. Godinho designou pelo «cavaleiro-mercador» – e não deu origem a uma economia de base capitalista como sucedeu nos Países Baixos e que fizeram de Amesterdão o centro da economia europeia no séc. XVII; um papel que Lisboa e, novamente citando Fernand Braudel, tinha todas as condições geográficas e económicas, para ter exercido anteriormente se as políticas tivessem sido conduzidas com outro alcance e ambição.
Ambição que as políticas de fomento pombalino, em grande medida, incorporaram com uma estratégia que fez do Brasil o seu núcleo essencial, visando a integração da economia colonial na economia metropolitana, ou seja, desenvolver as culturas do Brasil para exportação e fomentar a criação de uma indústria nacional que lhe estivesse o mais possível associada. Daí que, tenha sido na classe dos mercadores que se forjaram os principais homens da indústria que o país foi conseguindo criar.
Mas esta ambição não permite esconder os limites deste projecto que no fundamental tinham que ver com a dependência do Brasil e com a manutenção do chamado «pacto colonial», indispensável para nos garantir o exclusivo das exportações brasileiras. Aspecto também essencial era, com a ausência de uma verdadeira “economia nacional” que permitisse criar procura interna para a indústria nascente. A não concretização de uma reforma na agricultura (o vinho era dos poucos produtos agrícolas verdadeiramente integrado nas rotas do comércio internacional) e a ausência de uma política de transportes e comunicações no território nacional que permitisse uma outra mobilidade de pessoas e mercadorias, foram factores de bloqueio assinaláveis.
Quanto ao Estado não podendo deixar de continuar a ter um papel central na vida económica, foi progressivamente abdicando de uma parte do controle directo sobre as actividades económicas, afirmando-se, sobretudo, no papel de impulsionador, fixando regras que restringindo a concorrência – com a concessão de exclusivos a empresas em áreas críticas – garantissem condições de mercado sustentáveis. As técnicas de gestão moderna que foram promovidas nas empresas que estavam sob o controle público com Pombal, permitiu que após a sua saída, uma boa parte destas tivesse sobrevivido, agora já sem a participação do Estado.

3-A nível económico, que ensinamentos podemos ir buscar a este século XVIII para o Portugal do século XXI?
R-Como referi na pergunta anterior, um dos aspectos que a meu ver merece realce na política económica de Pombal e que esta não se resumiu a ser uma “navegação à vista”, definida em resposta a uma crise conjuntural emergente. A melhor prova disso está nos seus “Escritos Económicos de Londres” redigidos em 1741-42, duas décadas antes de Pombal ter posto em prática a sua política económica, textos sem paralelo em escritos seus contemporâneos e que revelam uma lucidez sobre os reais constrangimentos com que a economia portuguesa se confrontava muito pouco comum e que estavam longe de se circunscrever aos Tratados – desde logo de Methuen – celebrados com a Inglaterra, mas resultavam, sobretudo, de práticas discricionárias dos ingleses, nomeadamente no acesso aos portos pelas embarcações nacionais e que Pombal procurou contrariar no seu futuro Programa, em particular com a criação das Companhias de Comércio e Navegação adstritas ao comércio com o Brasil.
Os tempos hoje são outros e o que nos fica é a importância das políticas serem desenhadas com visão estratégica e partindo dos problemas estruturais do país sem estarem, como estão, excessivamente subordinadas às orientações e directizes da União Europeia. No séc. XVIII não era fácil ter uma política externa independente e que não estivesse alinhada com os interesses das potencias dominantes, mas com o realismo dos seus limites, Portugal procurou tê-la.
Também merecendo reflexão pela analogia, o facto de, ontem como hoje, os maiores entraves ao comércio intra-europeu não resultar de barreiras ou taxas alfandegárias ( hoje inexistentes no interior da U.E.), mas de outro tipo de bloqueios ao comércio.
As políticas pombalinas deixam-nos ainda um legado importante que tem que ver com a superação da visão dicotómica comércio/indústria e com a adopção de uma perspectiva integrada que ligava a produção colonial (agrícola) comércio e indústria. Adoptando o pensamento mercantilista dominante na Europa, olhou, contudo, para a economia não pelo lado da acumulação monetária (escola monetarista do mercantilismo), mas na perspectiva do seu comércio externo em que o ouro era um meio de pagamento. Tínhamos défices continuados no nosso comércio de bens que era compensado com o ouro do Brasil, mas Pombal, bem à frente do pensamento dominante neste domínio não via este comércio apenas na vertente da troca de bens mas associava esta aos serviços e, desde logo, ao transporte (a balança de serviços que ainda hoje é muitas vezes ignorada, apesar do actual impacto que na mesma tem a actividade turística). Ou seja, via o comércio em função do valor criado com o mesmo e pela forma como este valor era repartido pelos seus intervenientes.
Ele mostra-nos ainda que, tendo Portugal uma escassez de recursos financeiros e de empresários com capital para investir, ou, pelos menos, dotados de uma cultura de investimento, foi possível criar as duas Companhias de Comércio Marítimo que referenciámos com base em financiamento privado, e que eram verdadeiras sociedades por acções (note-se que as tentativas que anteriormente haviam sido feitas neste domínio tinham todas fracassado, conduzindo à insolvência das mesmas). E fê-lo com base na reunião de muitas pequenas e médias poupanças, a partir de um clima de confiança no modelo de gestão adoptado e, em que, no final, nenhum investidor deixou de ser devidamente remunerado.
Mas, o século XVIII revela, também,como dissemos, os limites de uma política assente apenas no comércio internacional. Sem a criação de uma verdadeira economia, ou seja, sem um mercado interno capaz de absolver uma parte expressiva da nossa produção industrial, era difícil assegurar o sucesso das indústrias criadas. Problema este que se perpétua nos dois séculos seguintes, com a agravante de as nossas colónias em África não serem capazes de desempenhar um papel similar ao que o Brasil tinha tido.
Somos um povo com o gosto pela aventura, capaz de suportar condições de vida agrestes e desafiantes, mas o nosso empreendedorismo tinha, em grande parte, um alcance limitado: era sempre um meio e não um fim em si mesmo, ou seja, destinava-se, na maioria dos casos, a permitir amealhar rendimentos e obter ganhos financeiros que permitissem um regresso às origens em condições favoráveis Mas, também este traço se perpétua na nossa história posterior, em que os regulares e cíclicos fluxos de emigração existentes não foram geradores (com a excepção de uma grande parte dos «regressados» das ex-colónias em África) de se traduzir numa dinâmica empreendedora expressiva no território do nosso país.
Mas, talvez, a maior similitude que vemos entre o séc. XVIII e a actualidade – com as óbvias diferenças que a integração económica e a evolução das infraestruturas permitiu – esteja nos constrangimentos provocados por um défice significativo nos transportes e na mobilidade no interior do território, em que um país com uma área geográfica relativamente pequena continua a ter, nas falhas de mobilidade, uma explicação relevante para as desigualdades e assimetrias regionais.
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José António Cortez
Portugal na Revolução Comercial do Século XVIII: As Reformas e as Políticas Pombalinas
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