Juan Gabriel Vásquez e o direito a inventar e mentir e imaginar dentro de um romance

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Como convivo todos os dias com monstros sagrados, a minha ideia de ser inteligente pode estar um pouco deturpada. Por falar em inteligência, experimentei um resumo deste livro no CHAT-GPT e, para meu pasmo, a IA inventou um texto desconexo e falso sobre as conferências de Vásquez, o que é quase de louvar, uma vez que foram proferidas em Oxford e seria fácil lá chegar. Será a IA mais preguiçosa do que eu?
E não, este não é um livro sobre tradução, mas sim sobre o direito à diversidade, o direito a inventar e mentir e imaginar dentro de um romance, o direito a um branco escrever na pele de um negro, uma mulher na pele de um homem, se assim não for de que vale a liberdade? “Do mesmo modo, Marguerite Yourcenar, mulher belga do século XX, não teria podido escrever Memórias de Adriano na voz de um homem do século II.”
Pois não é sobre tradução, é mais sobre liberdade e de como o romance é, isso sim, tradução e tradição dessa liberdade, tantas vezes colocada em causa, muitas delas por ilustres cavalheiros “Platão, falando através de Sócrates, condena os poetas por assumirem vozes alheias (sem se dar conta da ironia).”
Democratizar o olhar, dar aos mortais a visão de se reverem na arte, de serem o centro das atenções, foi o que fez Velasquez em As Meninas. Não se pede isto a todos os artistas, na verdade nem se deve pedir nada, a não ser a generosidade de serem e existirem e partilharem o sonho de não nos resumirmos apenas ao que pensamos pensar.
Os romancistas, por exemplo, que distorcem a História ou dão dela a versão pessoal de cada personagem, rumando assim pelos caminhos perigosos das opiniões diversificadas. Como Tolstói quando questionado porque existiam “divergências…entre a descrição dos factos históricos no livro (Guerra e Paz) e as versões dos historiadores”, respondeu que “a divergência era não apenas intencional, como também inevitável.”
Chegar ao âmago de cada um, como seres sociais, individualistas e contraditórios “Conhecer profundamente outro ser humano,conhecê-lo até aos seus mais íntimos recantos, é visitar regiões da nossa condição das quais podemos não regressar indemnes.”
O romance surgiu no tempo certo e desenvolveu-se como filho do Iluminismo e das revoluções, na altura em que Deus começou a não ser o centro do mundo – embora agora muitas vezes o seja com más intenções, e não me refiro aos verdadeiros crentes, pois que os há falsos -, deixando espaço para a liberdade de criar. “A vocação deicida é inseparável de um inconformismo radical: ninguém se dispõe a inventar um mundo se estiver satisfeito com o que já existe.”
É por isso que a arte é subversiva e um leitor a sós com o seu livro é um mistério e uma ameaça aos poderes instalados, principalmente às ditaduras e aos absolutistas emparedados por certezas e dogmas. “A história do romance moderno é uma luta pelo direito a dizer o que alguém crê que não deve ser dito, e até pelo direito a pensar o que alguém crê que não deve ser pensado.”
Digam à IA que se enganou e foi preguiçosa, o autor não discorre sobre a tradução de uma língua para outra, porventura do mundo para dentro de nós e de nós para dentro de um livro, de onde saímos diferentes, para o bem e para o mal. “A ficção existe porque as nossas verdades são diversas e porque há forças que limitam as nossas liberdades; dito de outro modo, a ficção existe porque não aceitamos de bom grado que a vida humana tenha limites. É talvez por isso que continuamos a precisar dela: por pura rebeldia.”
Se depender de mim…
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Juan Gabriel Vásquez
A tradução do Mundo
Alfaguara  17,45€

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