Luís M. Vicente: “Não me interessa apenas saber como funciona o mundo”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro «O Livro da Alice»?
R-Aos 70 anos de vida e após meio século como aprendiz de biólogo, senti que era tempo de fazer um balanço — não um fecho, mas uma travessia. O Livro da Alice é o primeiro de cinco volumes que dedico aos meus cinco netos: Alice, André, Laura, Madalena e Sebastião. Cada livro será uma carta íntima e pública, uma tentativa de devolver-lhes, em forma de palavras, aquilo que recebo com a sua existência.
Claro que é um livro autobiográfico — porque todo o texto o é, mesmo quando disfarça. Um poema, um romance, um artigo científico com dados frios e tabelas rigorosas — todos eles nascem da vida vivida. Seja porque descrevem uma revolução que se testemunhou, seja porque traduzem em equações uma inquietação com a forma como os animais ocupam o espaço. O que escrevemos carrega sempre o que fomos — ou o que desejámos ser.
2-No livro aborda um conjunto de temas que estão um pouco distantes do seu trabalho habitual de professor e investigador: o que o motiva para escrever sobre filosofia, história ou política, por exemplo?
R-Antes de mais, procuro ser cientista — e isso molda a forma como penso o mundo. Mesmo quando escrevo um poema de amor, há um algoritmo qualquer a murmurar. A ciência deu-me ferramentas; a filosofia, o horizonte. Uma é o método, a outra é o sentido.
A filosofia é acção pensada — é ela que sustenta a nossa ética, a nossa postura perante o mundo. A ciência sem filosofia torna-se técnica cega. Ambas vivem da dúvida — e é nisso que me reconheço. Já a história, sem a qual não há presente compreendido nem futuro possível, é o chão onde tudo se joga. E a cultura? A cultura integral, como dizia Bento de Jesus Caraça, é o húmus da acção transformadora.
A ausência de um Ministério da Cultura no novo governo é um sinal. Um sinal preocupante: o neoliberalismo — protofascista, sorrateiro — está a infiltrar-se nas nossas vidas. Como dizia o Zeca Afonso, primeiro com pés de veludo, agora cada vez mais com botas cardadas.
E tudo isto — ciência, história, filosofia, política — faz parte do meu trabalho enquanto professor e investigador. Ensinar ciência exige, antes de mais, escutar. Já dei aulas a crianças do primeiro ciclo e a universidades seniores, em Portugal e lá fora. Para ensinar biodiversidade com modelação matemática a um garoto de seis anos, a uma ex-costureira de oitenta ou a um doutorando em Paris, é preciso reinventar a linguagem. Ser fiel ao conteúdo e sensível ao contexto.
Uma das experiências mais desafiantes da minha vida foi o trabalho para as Nações Unidas, entre 2000 e 2006. Sob a tutela de Kofi Annan, ajudei a construir pontes epistemológicas. Como pôr em diálogo um habitante de Estocolmo e um indígena do Peru, um papua da Nova Guiné e uma costureira de Luanda, um estudante de Oxford e um jovem de uma favela no Rio? Essa foi, talvez, a mais bela “aula” da minha vida.
3-Pensando no futuro: pensa continuar a percorrer outros caminhos e que assuntos são o objecto da sua reflexão e, provavelmente, do seu próximo livro?
R-Os temas mantêm-se — como se fossem veios subterrâneos que me atravessam desde sempre. A vida, as vidas. A ciência e a filosofia. A história e o amor. Não me interessa apenas saber como funciona o mundo. Quero também perguntar por que motivo vale a pena transformá-lo.
__________
Luís Neves
O Livro de Alice
Companhia das Ilhas 19€