Mário Soares pelos seus dedos

Os tempos vão de feição para regressos a exemplos de vida, cidadania e determinação na política. O descrédito da actuação de quantos aproveitam o exercício de cargos de governação para ganhos pessoais e dos apaniguados mais torna premente a referência de exemplos positivos, a leitura do seu pensamento, das linhas de orientação, da ética, do respeito pelos outros. É o caso deste «ensaio autobiográfico político e ideológico» que Mário Soares publicou com «um político assume-se».
Desde logo esta consigna de assunção pessoal revela que um percurso, longo como é o caso, não é isento de erros, de descaminhos, de avanços e recuos. Goste-se ou não de Soares, há que reconhecer nele, como em poucos dos seus pares, mesmo de outros partidos, a coerência de ideais, a galhardia na sua defesa, a persistência. A par, é certo, de ambição pessoal, que não ofusca o caminho da justiça social, o equilíbrio de valores humanos, a defesa do seu povo.
A política como Soares a entendeu é «uma missão pública, extremamente honrosa e desinteressada, para quem a exerce com este espírito: servir os outros e a sua Pátria». Modesto, recusa a condição de caso isolado ou excepcional, porque «esta é a regra geral partilhada pelos políticos sérios de todos os partidos».
Soares marcou a vida política portuguesa do pós-25 de Abril, mas já antes o seu nome circulava persistentemente como um exemplo activo na política, fundador do seu Partido Socialista fora de Portugal, já que por cá não havia condições. Filho de republicano, tinha militado no Partido Comunista, dissidido, avançado na busca da via salvífica que um dia mudaria o curso da história do País.
Teve de mudar muito ao longo desse caminho, «a mudança das coisas, em virtude da passagem do tempo, contribui para ajustar as ideias». E é essa capacidade (desejo) de mudança que o levou a ficar como autor de um frase, no Parlamento, cuja autoria repõe: «Só os burros, caro Amigo, é que não mudam de ideias.» Disse-o, originalmente, Cunha Leal, tribuno da I República.
Regressado a Portugal, com a revolução do 25 de Abril, trazia claramente como objectivo pôr o seu partido na área do poder. Mas na bagagem viajava com ele uma mala cheia de conflitos com o seu par de lutas antifascistas, Álvaro Cunhal, e a influência do Partido Comunista Português. Cunhal tinha sido seu professor (no colégio do pai de Soares), encontraram-se depois no estrangeiro da clandestinidade, e as divergências foram crescendo.
De novo em Portugal, Mário Soares ainda foi esperar Cunhal, que chegou mais tarde, ao aeroporto. Mas ele já tinha estabelecido que o modelo do socialismo soviético não era o seu, tinha começado a trilhar o caminho do socialismo de rosto humano crescente na Europa. A evolução em Portugal, no seio de uma intensa luta pelo poder, afastou cada vez mais a via seguida por cada um dos líderes. Obrigou-o a alianças à direita, a estratégias de ruptura, mesmo com velhos camaradas de luta.
A «autobiografia» que aí está tem todos os ingredientes para se perceber ou recordar longas décadas da vida política portuguesa. Soares é, entre os vivos, um dos maiores depositários do nosso trajecto histórico das últimas quatro décadas. Com a sua visão pessoal, que muitos enjeitarão, mas mesmo aí vale a pena perceber como ele viu os acontecimentos, como lutou pelo pedaço de Portugal a que se considerava com direito. Como ajudou a mudar Portugal. É que ajudou mesmo.
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Mário Soares
Um político assume-se – ensaio autobiográfico político e ideológico
Temas e Debates/Círculo Leitores, 17,50€