Miranda July numa viagem que se tornou curta em quilómetros, mas longa em experiências
CRÓNICA
| Célia Gomes
O título deste livro é «de quatro», mas poderia ser «de quarenta», pois é das aventuras e devaneios de uma mulher dessa faixa etária que trata esta obra.Obra que despe e desnuda conceitos, preconceitos e puritarismos de uma forma crua e provocadora. Se este livro fosse uma bebida alcoólica, com certeza seria uma «grappa», daquela que queima a garganta e faz abrir e fechar as pestanas como asas de borboleta em voo . Borboletas que sofrem metamorfoses, passando de lagartas rastejantes e moles a seres esvoaçantes e livres. Também as mulheres são borboletas. Sofrem cíclicas metamorfoses (menarca, gravidez, parto, menopausa…) e, de uma forma declarada ou segredada metamorfoses atípicas que as fazem voar do «politicamente correto» e expectável para o firmamento do sentir e ser. Assim é a protagonista deste livro que numa metamorfose interior, procurou um casulo maior que os braços conjugais, dependurando-se nos braços do mundo. O mundo das luas, das marés, da intuição, do «tic tac» dos «calores e afrontamentos» da vida que se apressa e grita presa às rotinas de um casamento estéril. Estéril não por falta de filhos, mas por falta de fantasia, de verdade e de cumplicidade. Estava no casamento como quem está «no campo da morte», agindo com diplomacia e de fato e gravata. «Eu e o Harris somos mais formais, como dois diplomatas que não têm a certeza de que o outro não tenha posto veneno no nosso copo. Sempre com sede, mas sempre à espera que seja o outro a dar o primeiro gole». Assim se passa com a maioria dos casais. (E poderá chamar-se a isto um casal?) Mas na noite das monótonas certezas há sempre um farol escondido, que aponta para um cais diferente. Para o cais onde se prepara para navegar o barco da mudança Mudança que pode surgir através do fumo do esgotamento (o tal «já não aguentar mais»), do véu de uma paixão ou apenas de uma conversa informal de amigos, como foi o caso. «Na vida há estacionados e há condutores (…) Os estacionados precisam de uma tarefa discreta e pela qual são merecedores de aplausos. Passam o resto do tempo chateados como que desiludidos. Os condutores são capazes de se manter atentos e motivados mesmo quando a vida é chata. Este tipo de pessoas pode atravessar o país de uma ponta a outra de carro». E foi o que tencionou fazer a nossa protagonista. Deixar de estar estacionada e arrancar a alta velocidade, conduzindo de Las Vegas (onde morava) a Nova Iorque para aí festejar os seus 45 anos. «E pelo resto da minha vida posso contar à pessoas a travessia que fiz aos quarenta e cinco anos, quando finalmente aprendi a ser eu própria». Corajosa! Travessia apoiada pelo marido e pelo filho , que não a entenderam ser um «grito do Ipiranga», mas um “grito de salvação». Ela própria assim o concebeu, por ao despedir-se do marido lhe lançar «um olhar que dizia: «se eu sobreviver, volto para ti e vamos enfim desistir desta farsa e ser um só». Talvez sejam estas as palavras mágicas de um casamento «ser um só». Um só não apenas na consumação do amor carnal, mas sim no amor no seu todo. E a paz é filha do amor, que só nasce em solo fértil e regado. E se só os « saltos altos» nutrem esse solo , alguma coisa está mal. «Depois do Sam adormecer, forcei-me a entrar no quarto de Harris usando apenas uns sapatos de salto alto. Os saltos ajudam-me a «fazer aquilo» como quem arranca um penso rápido». Que dor!
E é sem saltos altos que a nossa «lagarta» acelera a fundo para a sua pretensa longa viagem de três semanas. Viagem que se tornou curta em quilómetros, mas longa em experiências. É então que surge Davey, como o pathos (na tragédia grega), assinalando o ponto de viragem e da metamorfose. Metamorfose num quarto de um motel, que a narradora redecora à «sua medida» e maneira, com a excentricidade com que nunca decorou a sua casa. Quarto onde se isola do mundo e passa a conhecer as suas entranhas, para além da derme do sentir. Quarto testemunha da farsa dos seus telefonemas conjugais, dos seus encontros com Davey onde percebe poderem ser sexuais sem sexo, por este não seguir a máxima de Oscar Wilde «Posso resistir a tudo menos à tentação». «Davey e eu deitámo-nos nesta alcatifa encaixados como dois bebés num útero – suspensos, alimentando-nos um do outro, mas nunca com um objetivo. Não produzíamos orgasmos nem nada, não tínhamos necessidades práticas, apenas as exigências das nossas almas em expansão». Sublime ou frustrante? Depende da ótica. Todo o útero é um casulo. E este quarto útero «pariu» uma mulher diferente. Uma mulher que chegou a casa após a longa viagem interior, confusa, obcecada por um narcótico chamado Davey, que considerou por algum tempo ser a sua salvação (ou rendição), mas que, no fundo, apenas serviu de trampolim para o voo. E ao «quarto útero» regressava, só ou acompanhada, reiteradamente à procura de evasão. Foi neste quarto que a protagonista reuniu as amigas para conversas nada pudicas que nenhum homem imagina que as mulheres possam ter, mas têm. Conversas que fazem «corar» qualquer um e que são mais eficazes do que qualquer fluoxetina. Entre muitas, «fodes com o corpo todo. Há outra maneira? Com a cabeça toda…». E, já ruborizada, mais não digo nem escrevo. Foi neste quarto que teve experiências homossexuais que a fizeram desbravar outros horizontes, corpos femininos. Foi neste quarto que conheceu o seu próprio corpo, a sua libido e o prazer. Tudo escrito e descrito por Miranda July com uma linguagem que incomoda, desprovida de qualquer elegância ou romantismo. Não gosto («ai de mim que sou romântica»)! Mas a verdade é que não há leis a impor aos escritores regras de lisura e politicamente corretas e muito menos o objetivo do final «foram felizes para sempre» (Era bom!). Kafka defendeu que os verdadeiros livros são aqueles que nos ferem e nos afligem, que nos despertam «como um murro no crânio». Este é um deles. Os vocábulos obscenos, selecionados por July, são murros que despertam para temas importantes: a farsa do casamento, o fingimento, para a necessidade da intimidade, para as mudanças da libido, para a quebra da monogamia. «Sentia-me liberta da minha idade e feminilidade e por isso a nadar em novos e magníficos renques de liberdade e tempo. Pode estar-se sempre a mudar através da intimidade, e não exatamente passar à frente da idade, mas fazer coincidir a sua estranheza à nossa própria estranheza (…) Eu podia ser sempre como era no quarto 321. Imperfeita, desprovida de género, ousada, sem vergonha». Ao ler este trecho recordei a imortal Rita Lee com o seu «me cansei de lero-lero, dá licença, mas eu vou sair do sério. Quero mais saúde me cansei de escutar opiniões». E ao cantarolar esta música imaginei esta cantora a gravar um disco no quarto 321. Grandes músicas…
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Miranda July
De quatro
Quetzal 19,90€