Olhem só o que já nos aconteceu

Diz-se que a História não se repete. Repita-se, ou não, a publicação desta biografia de Salazar, leva-nos ao cotejo dos tempos da génese da ditadura do Estado Novo, e também ao que foi a sua aplicação e consequências. Mito, como é o homem, uma obra destas pouco ajudará a desfazê-lo, e muito boa gente poderá sentir-se tentada a dar-lhe o pedestal. Estamos, parece, em época de espera de salvadores de pátrias, dons sebastiões – e brumas e nevoeiros não faltam.
Foi assim…
A iniciativa foi de monta, como não poderia deixar de ser, tanto mais que estava por fazer a investigação aprofundada e séria de décadas tão importantes da nossa História, apesar da publicação de obras avulsas variadas, com incursões mais ou menos folclóricas e meros episódios da vida do ditador (alguns de pouca credibilidade, incluindo entrevistas póstumas).
O autor deste Salazar é um académico e a obra que concretizou reflecte essa condição, tanto mais que, lembra ele, teria de competir com a única biografia de monta publicada, de Franco Nogueira, o último ministro dos Negócios Estrangeiros do antigo presidente do conselho. Passou ao lado, para outra, e virou costas à dificuldade resultante da ideia de que “qualquer sinal de empatia ou tentativa de contextualizar e ‘compreender’ Salazar seria um insulto às suas vítimas”.
Por outro lado, recorda, estes tempos, os de hoje, com opróbrio ou não, já deram “a vitória de Salazar no programa Os Grandes Portugueses, emitido pelo canal público de televisão”, facto que “ilustra a mudança de atitude detectável em Portugal relativamente ao seu passado recente”.
Parece, pois, apropriado, como demonstração do valor e interesse desta biografia, a consideração rápida do relato feito da ascensão de Salazar aos corredores do poder, a sua estratégia de dominar a máquina do Estado e levar assim a água ao seu moinho. E aos interesses ideológicos que perseguiu até ao fim, na sua ligação à Igreja Católica (mormente pela sua relação próxima com Cerejeira), e do seu ódio à causa republicana, contra a qual sempre escreveu desde os primeiros passos na academia coimbrã.
“A base política de Salazar em 1928, os democratas-cristãos portugueses, nunca tinha sido grande, nem em termos de números, nem de recursos”, assinala Ribeiro de Meneses. Daí que, acrescenta, se tenha empenhado em tornar-se indispensável, “gerando um consenso de apreço à volta da sua pessoa que o protegesse dos caprichos dos militares”.
E é assim que vai tomando as rédeas do governo, a partir do controlo pessoal e absoluto das Finanças, ao ponto de, face a contrariedades, não hesitar em pedir a demissão quando e sempre que isso era vital para voltar com mais poder. Carmona, Óscar, embora nem coincidisse absolutamente com ele, ideologicamente, era o Presidente da República indicado para lhe dar fôlego: não via outra saída, que não ele, para a situação delicada das finanças públicas e da economia. E outros “carmonas” viriam, até ao Tomás final.
Internamente, não se punha sequer a questão de saber se o bom povo português (e o outro, embora escasso, convenhamos) o considerava de facto um salvador – e se calhar muita gente via-o como uma benesse, mesmo que ele não manifestasse grande consideração pela população. Externamente, cedo surgiu, ou foi soprado e alimentado, um fogo na imprensa internacional, que aplaudia as medidas de controlo adoptadas pelo antigo professor coimbrão, que aplicava as teorias desenvolvidas nos tempos da academia.
É o caso de um seu texto sobre a necessidade de aumentar a produção nacional de trigo para diminuir a dependência portuguesa dos mercados internacionais, que ele levou à prática e culminaria na campanha do trigo – e no esgotamento de grande parte dos campos desmatados, por via da erosão. Mas a sua visão dos problemas portugueses era mais vasta: o declínio português resultaria de factores não só financeiros mas também económicos, políticos e morais.
Obtido o controlo da situação, em termos de autoridade, para impor soluções económico-financeiras (estas primeiro), impôs o orçamento para 1928, com o horizonte de um superavit substancial, logo nesse ano. Para isso cortou a despesa de forma substancial e aumentou a receita proporcionalmente.
“Foram criados novos impostos, enquanto contribuições existentes, inclusive o sinistramente imposto de salvação pública, foram aumentadas. Funcionários públicos, oficiais do Exército e reformados foram atingidos. Os impostos sobre a propriedade também aumentaram, designadamente em zonas urbanas…”, regista o biógrafo. Já ouvimos falar disto, recentemente?
Eis por que começámos pela dúvida (receio) de que História se repita. Ou pelo menos a história, esta que nos subjuga em cada um dos dias com que se faz as décadas. Um povo acrítico, desiludido, não se reconhecendo no regime, como o que sobrou das disputas prolongadas desde 1910 (da República que este ano comemorámos), pode aceitar a remissão mesmo que lhe cortem as asas da liberdade…
Está aí o exemplo, o alerta, recordem, que a coisa do Salazar levou mais de 40 anos – e a erosão foi mais lenta do que a dos campos de trigo do Alentejo. É por isso que as biografias podem ajudar a perceber determinados discursos tão cândidos.
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Salazar
Filipe Ribeiro de Meneses
D. Quixote, 37€