Pedro Correia Silva: “A memória coletiva é frequentemente alvo de tentativas de manipulação”

Pedro Correia Silva é licenciado em Arqueologia porque começou cedo a ter especial interesse pela ciência e acabou por optar por investigar acontecimentos que ocorreram neste planeta e à história das pessoas que nele viveram séculos antes de si. Esta obra destinada a um público mais vasto “surgiu da necessidade de um livro que abordasse a arqueologia de uma forma simples e directa” mas “sempre cientificamente rigorosa”. Resultado plenamente alcançado.
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P-Qual a ideia que esteve na origem do seu livro “Escavar o Passado”?
R-Sempre procurei informar e sensibilizar as pessoas à minha volta sobre a arqueologia e, muitas vezes, perguntavam-me que livros recomendaria como uma boa porta de entrada para melhor se compreender esta ciência. Portanto, respondendo de forma directa: a ideia inicial surgiu da necessidade de um livro que abordasse a arqueologia de forma simples e direta para o público não especializado. Claro, existem livros mais técnicos e até algumas obras de divulgação, embora estas últimas sejam muito antigas ou estejam há muito esgotadas. Em resumo, quis escrever um livro que desmistificasse a disciplina, abordando desde os seus primórdios até às práticas mais recentes, com uma linguagem acessível, mas sempre cientificamente rigorosa. O objetivo foi dar ao leitor comum uma porta de entrada honesta e estimulante para este campo que muitos consideram fascinante.
P-Sendo uma breve história da Arqueologia, o livro traça a sua evolução: de que ciência estamos a falar — da arqueologia mais avançada que hoje se faz?
R-Depois de, nos primeiros dois capítulos, explicar o que é (e o que não é) a arqueologia, reservo o miolo do livro para percorrer a evolução desta disciplina desde os tempos em que era confundida com a mera recolha de objectos valiosos, até à sua atualidade. A arqueologia começou, mais tarde, a florescer como uma ciência classificatória, tal como a botânica ou a geologia, evoluindo progressivamente para uma arqueologia mais “completa”, consciente dos seus objetivos e apoiada no desenvolvimento de novas metodologias (metodologias essas, a propósito, que nasceram do próprio avanço do pensamento arqueológico, isto é, do seu desenvolvimento epistemológico). Além disso, não podemos esquecer, a “aliança” entre esta disciplina e outras ciências, com recurso a técnicas sofisticadas, como a famosa datação por radiocarbono, as análises de ADN antigo, as imagens obtidas por satélite, entre muitas outras. Embora se fale mais do aspeto material da arqueologia, importa afirmar que o seu grande objetivo é compreender cada vez melhor o ser humano.
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“O objectivo foi dar ao leitor comum
uma porta de entrada honesta e estimulante
para este campo que muitos
consideram fascinante.”
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P-E em Portugal: como está a nossa arqueologia, que projectos dominam a vida dos nossos arqueólogos?
R-Talvez ao contrário do que se possa pensar, Portugal tem hoje uma comunidade arqueológica muito ativa e altamente qualificada. Segundo os dados recolhidos pela arqueóloga Jacinta Bugalhão, entre 1995 e 2021, licenciaram-se três mil arqueólogos. Estes dedicam-se aos mais variados projectos. Podemos começar pelo meio universitário, com os seus docentes e outros investigadores integrados em centros de investigação. Temos também arqueólogos que pertencem aos quadros dos municípios, bem como em museus. Depois, talvez onde possamos encontrar a maior franja de arqueólogos, as empresa de arqueologia, cuja investigação científica também aí se realiza. A outra componente desta arqueologia empresarial é a chamada arqueologia preventiva, ou de emergência, associada a obras públicas e privadas. Existem ainda vários projectos que, arqueologicamente falando, são fascinantes para os arqueólogos e para a sociedade como um todo: refiro-me a investigações que se estendem por anos, ou mesmo décadas, como é o caso de Conímbriga, do Côa, dos Perdigões, ou vastos territórios como o Vale do Tejo, entre muitos, muitos outros sítios espalhados pelo país. E, convém dizê-lo, não nos podemos esquecer da água, dos rios e do oceano, e da excelente investigação feita em arqueologia subaquática. Ainda assim, e porque nem tudo são rosas no grande crescimento da arqueologia nas últimas décadas, persistem desafios ao nível do financiamento, da proteção do património e da valorização pública da disciplina.
P-A prática da moderna Arqueologia poderá ser uma actividade ou uma profissão interessante em Portugal?
R- Tal como referi anteriormente, e também ao contrário do que muitas vezes se pensa, existe em Portugal emprego para os seus arqueólogos. É costume bater-se na mesma tecla sempre que se descreve esta ciência: “fascinante”, “apaixonante”, entre outros elogios que refletem, de facto, o encanto que a arqueologia exerce. A realidade, contudo, é mais crua e tem os seus senãos. Se a arqueologia exige paixão, exige igualmente rigor, resiliência e até sacrifícios. Em Portugal, existe uma geração bem preparada, mas as oportunidades nem sempre acompanham o nível de formação. A arqueologia empresarial cresceu, permitindo alguma empregabilidade, embora, por vezes, com condições laborais precárias. Ainda assim, para quem tem genuíno interesse pelo passado humano e deseja contribuir para a preservação da nossa herança comum, é uma profissão intelectualmente gratificante. Além disso, há cada vez mais espaço para a inovação, para o uso de novas tecnologias e para o trabalho em equipas multidisciplinares.
P-Um aspecto que intriga no seu livro é o facto de colocar a questão de a Arqueologia poder ser um instrumento político: como?
R-Este capítulo, confesso que inusitado mesmo para quem é arqueólogo, partiu de um olhar atento ao mundo atual. O investigador que trabalha com o passado sabe que a memória coletiva é frequentemente alvo de tentativas de manipulação. Nesse sentido, procurei compreender de que forma a arqueologia foi utilizada por alguns regimes totalitários para sustentar as suas visões da história e como aplicaram essa informação enquanto estiveram no poder. A escolha do que escavar, do que mostrar ao público ou do que ocultar é, muitas vezes, uma decisão ideológica. A Arqueologia pode servir para legitimar narrativas históricas, reforçar sentimentos de pertença ou justificar reivindicações territoriais. É por isso fundamental que os arqueólogos desenvolvam uma consciência crítica sobre o seu papel social e ético.
P-Finalmente, consegue identificar os factores mais importantes do futuro desta ciência nos próximos anos?
R-Acredito que a disciplina continuará nas suas infindáveis congeminações epistemológicas e, o que quer que seja que saia desses concepções, julgo que o futuro da Arqueologia passará, inevitavelmente, pela intensificação da interdisciplinaridade e pelo recurso a tecnologias digitais: desde os SIGs, aos modelos 3D que facilitem a comunicação com o público, até à utilização de inteligência artificial. Mas, se falo na tecnologia, e um pouco a reboque do que disse sobre a questão política da arqueologia, será crucial reforçar a componente ética e participativa: envolver as comunidades locais e promover a educação patrimonial para uma maior sensibilização dos cidadãos em relação à sua história. A arqueologia tem um enorme potencial comunicativo, saiba se libertar da opaca redoma académica.
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Pedro Correia Silva
Escavar o Passado
Gradiva 17,50€

