Pedro Gomes Sanches: “O politicamente correcto é a nova Inquisição, mas em versão digital e sorridente”

1-Qual a ideia que esteve na origem do livro Rendição ou Ascensão dos Idiotas?
R-Bem, o livro não nasceu, foi construído. Sendo uma colectânea de crónicas, escritas ao longo de alguns anos, não foi originalmente escrito como um livro. O livro é, portanto, uma construção à posteriori. Escolhidas as crónicas, arrumei-as, então, segundo um argumento. O fio condutor, e respondo à questão, é da abdicação voluntária ou ingénua da liberdade; aquela ideia central do Grande Inquisidor, do Dostoievski: o homem não quer a liberdade, nem as angústias a que a liberdade o obriga. Depois há a ideia do idiota. Na Grécia antiga era o que se alheava da vida pública para tratar dos seus afazeres, agora é o que toma conta do espaço público, exortando virtudes e exigências aos outros, deixando de tratar da sua própria vida. Não sei qual desprezo mais. Naquele registo mais popular, o idiota moderno é uma espécie de burro motivado. Cheio de certezas morais, fala alto, quer salvar o mundo e, no processo, destrói a liberdade dos outros. Que, em bom rigor, também não se lhe opõem. O livro é, assim, uma espécie de inventário sarcástico dessa rendição alegre: rendemo-nos à segurança, à moral das boas intenções e ao conforto de não pensar. É uma história do nosso tempo, contada a partir dessa pergunta: quando é que deixámos de querer ser livres e passámos a preferir ser tutelados?
2-Como observador atento da sociedade portuguesa, quais lhe parecem ser as principais mudanças em curso?
R-Diria que estamos a passar de uma sociedade de opiniões para uma sociedade de emoções. As opiniões discutem-se, debatem-se, contraditam-se. As emoções – e, no contraditório, as agressões, as micro-agressões – não deixam espaço para lá da vitimização. Hoje, pensa-se menos e sente-se mais — e quanto mais se sente, menos se discute. Volto a Dostoievski que, no Crime e Castigo (se a memória não me trai) dizia “quando falha a razão, o diabo ajuda”. E aí está o resultado. Por outro lado, nessa obsessão de controlo, temos sociedades – e Portugal não é excepção – cada vez mais burocráticas e paternalistas, mas ao mesmo tempo mais melindrada, cheio de pequenos moralismos. As pessoas indignam-se, e o Estado, sempre prestável, oferece-lhes novas proibições para as consolar. Para sua segurança, para o seu conforto, para a sua saúde, porque não há planeta B, porque sim e porque não. E define os termos em que a “liberdade” pode ser exercida. O Estado já não se limita em função da liberdade do Homem, limita o Homem em função do seu mandato, do “bem maior” (ou, para usar a expressão da revolução francesa “da vontade geral”). É a era do “não podes, mas é para teu bem”. A liberdade está a tornar-se cada vez mais um conceito vintage. Gosto muito de repetir uma frase do livro, que eu acho que ilustra o estado paradoxal a que chegámos: “o homem, no fim da vida, pede um whiskey, um charuto e a morte. Só lhe dão a morte, porque a Direcção-Geral da Saúde adverte que o whiskey e o charuto fazem mal à saúde”.
3-A cultura em que o politicamente correcto pretende impor-se e condicionar a liberdade de expressão já é ou pode vir a ser um perigo para nós, portugueses?
R-Pode vir a ser? Já é. E o mais assustador é que nem precisa de polícia: basta um ofendido no Twitter para silenciar uma conversa. O politicamente correcto é a nova Inquisição, mas em versão digital e sorridente — em vez da fogueira, usa hashtags e comunicados indignados. E nós, portugueses, que temos um talento especial para a obediência disfarçada de civismo, estamos a aplaudir. O riso, que sempre foi um gesto de liberdade, está a tornar-se perigoso. No fundo, o politicamente correcto quer um mundo limpinho — e, como se sabe, nada é mais sujo do que a mania da limpeza.
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Pedro Gomes Sanches
Rendição ou Ascensão dos Idiotas
Guerra & Paz 16,50€

