Renato Janine Ribeiro: “Os sentimentos são mais lentos do que a tecnologia, mas sem eles, esta não vale nada”

1-“A Neve Quente dos Trópicos” é o seu primeiro romance: como espera poder olhar para ele daqui a 20 anos?
R-Espero que não tenha sido o único! Tenho pensado em escrever um romance pondo em paralelo o acidente que imbecilizou Salazar e a doença que derrubou o ditador brasileiro da mesma época, Costa e Silva. Salazar se acidentou em agosto de 1968. No dia 7 de setembro de 1969, saiu uma entrevista com ele no Le Figaro, em que ficava claro que ele não sabia que estava fora do poder – algo a lembrar o Adeus Lênin, filme bem posterior. Ora, na semana anterior Costa e Silva teve uma sucessão de AVCs e, no dia 7 de setembro – data da independência do Brasil – ele estava abobalhado já, ao mesmo tempo que o embaixador dos Estados Unidos era sequestrado em troca da libertação de presos políticos. Daria uma história interessante: o colapso do ditador português e o de um dos cinco generais-ditadores brasileiros. Os dois morreriam sem terem sarado. Sobre A Neve quente dos trópicos, espero então que tenha sido o primeiro de mais romances. Ou obras de ficção. Gosto de ficcionar com referências ao que chamamos de realidade, espero seguir por esta via.

2-Qual a ideia que esteve na base desta obra?
R-Anos atrás, o historiador norte-americano Michael Hall, professor na Unicamp, me sugeriu um romance histórico – que seria um hipotético Brasil holandês. Muita gente, aqui, já imaginou que uma colonização neerlandesa teria sido mais positiva para o Brasil do que a portuguesa – como vocês sabem, Portugal antes da Revolução dos Cravos era sinônimo do atraso. Ora, me disse Michael: um Brasil holandês teria sido uma África do Sul, um território de enorme apartheid. Muito pior do que a colonização portuguesa – e isso, lembrando que toda colonização é odiosa. Não desenvolvi esta ideia, mas ela ficou na minha cabeça.
O que me suscitou A Neve quente dos trópicos foi uma questão bastante simples: o caso único da transferência da monarquia portuguesa para uma colônia, ainda mais culminando na independência proclamada “de dentro”, sem ruptura, pelo herdeiro e ademais futuro rei de Portugal. Isso, somado a um leitmotiv dos historiadores brasileiros: foi a monarquia, importada de Lisboa, que garantiu a unidade nacional. O que por sua vez levanta uma hipótese frequente: sem o imperador, teria o Brasil se desagregado, como sucedeu com a América que foi espanhola? E, nesse caso, quais teriam sido as repúblicas lusófonas das Américas? Segui as fronteiras de duas nações rebeldes que de fato existiram, a brevíssima Confederação do Equador e a só um pouco mais duradoura República de Piratini.
Conceitualmente, esse episódio é ímpar. Qualquer historiador sabe que a maior parte do que acontece decorre de um processo. A queda da ditadura em Portugal (1974) e no Brasil (1985) não foram surpresas totais: decorreram de inúmeros fatores que, pelo menos a posteriori, identificamos. Mas a vinda da Família Real é um caso único. Bastasse os ventos demorarem mais algumas horas no Tejo, aquele fim de novembro de 1807, que a rainha louca e sua família teriam sido aprisionados pelos franceses, e nossas histórias teriam sido bem diferentes. Mais a nossa do que a vossa: o Brasil provavelmente teria se dissolvido em vários países. Já os Braganças estariam presos na França até a queda de Napoleão, em 1814, quando regressariam a Portugal; a diferença, para eles, é que teriam sido humilhados, o que não foram, ao virem para o Rio de Janeiro.
Aliás, a possível prisão de dona Maria I na França me suscitou a ideia, não apenas do encontro dela com o marquês de Sade, que adoraria lidar com uma loucura duplamente real, de realidade e rainha, como de uma peça, que nomeei Maria/Sade, e da qual já houve uma leitura dramática em São Paulo, comandada pela atriz Ligia Cortez.
Duas coisas me surpreenderam. A primeira foi que, quando você começa a imaginar — ou seja, quando se afasta do que historicamente aconteceu e inventa coisas —, o céu é o limite, ou talvez nem o céu o seja. Se você ficciona, então por que não aproveitar essa Confederação do Equador com capital em Pernambuco para trazer a este novo país o mais importante dos que já estiveram exilados no Hemisfério Sul, Napoleão Bonaparte? Ele estava em Santa Helena, na época. Teria sido perfeitamente plausível e possível dar-lhe uma segunda biografia, um novo sentido de vida. Então, o que é totalmente fora do esquadro pode, na literatura, tornar-se viável. Para um filósofo da política, como eu, isto é fascinante.
A segunda surpresa foi que ficava difícil não gostar dos meus personagens. Há um personagem especial, muito querido e admirado no Brasil, melhor dizendo, mas em relação ao qual tenho muitas restrições: nosso Dom Pedro II. No romance, ele acaba sendo Dom Pedro V de Portugal, uma vez que o Brasil não teria tido os Bragança como monarcas. Então, Pedro I e Pedro II teriam reinado apenas em Portugal, com Pedro IV, que de fato existiu, e Pedro V, homônimo de um rei vosso, mas que na minha narração  seria aquele que não teria sido imperador do Brasil.
Quanto à visão de nosso Dom Pedro II no Brasil, como um monarca bom, equilibrado, intelectualizado, que se dava com cientistas, que procurava Victor Hugo e conversava com Nietzsche num comboio — enfim, um personagem altamente qualificado, que só não aboliu a escravidão porque não tinha base política para tanto, mas era super bem-intencionado e apreciador da educação —, eu não concordo com ela. Penso que ele tem mais responsabilidade pela escravatura do que lhe atribuem. Afinal, ele era o imperador que dissolvia o parlamento quando queria e depois promovia eleições sempre fraudadas, nas quais triunfava o partido do agrado de Sua Majestade, agrado este que oscilava entre liberais e conservadores.
Além disso, seu interesse pela educação não levou a promover um sistema educacional comparável, por exemplo, ao de nossa vizinha Argentina, que, durante o mesmo tempo em que Pedro II reinou no Brasil, adotou um modelo quase francês, quase da Terceira República, de educação — o que responde por muito do avanço e sucesso argentino. Lembremos, entre outras coisas, que eles já tiveram cinco prêmios Nobel, e o Brasil nenhum. Embora hoje o Brasil esteja muito à frente da Argentina na economia, eles têm esse fator altamente positivo, que responde também por uma politização muito grande e os coloca, nesse aspecto, à nossa frente. São mais fortes que nós no que hoje se chama capital humano.
Mas o fato é que, enquanto escrevia sobre esse Pedro — que no meu romance teria sido vosso Pedro V de Portugal —, criei afeto por ele. A mesma coisa aconteceu com praticamente todos os personagens. Esta é uma coisa curiosa. Não sei se os escritores em geral têm essa visão, mas, no meu caso, criou-se uma onda de afeto em relação a eles.

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Vou por ensaio e erro. Começo um texto, passo a outro (incluindo o romance sobre os ditadores de nossos dois países). Estou cogitando escrever um livro que se poderia chamar “Entre a utopia e a distopia”, que poria frente à frente dois projetos de mundo. Um, feito de ódio, negacionismo, egoísmo, trumpismo. E outro, com os avanços na saúde, na expectativa de vida, na vitória sobre tantas doenças, no cuidado com o ambiente, na valorização da vida pós-trabalho, feita de ócio criativo. Sinto um misto de medo e esperança. Medo, porque o ódio e o rancor cresceram muito e, como dizem os entendidos em redes sociais, atraem mais likes (dizemos curtidas, no Brasil) do que as paixões positivas, como amor e amizade. Mas também esperança, porque temos todas as condições para termos um mundo muito melhor. O meu maior receio, porém, é a velocidade. O tempo se acelerou demais. Invenções mudam o mundo e somem, num piscar de olhos. Quem, dos jovens, sabe o que foi o VHS? Ou o DVD? O ruim disso é que as bases e referentes materiais se substituem sem darem tempo a nossa psique de assimilá-los. Não dispomos de tempo suficiente para dar conta, psicológica e eticamente, desta rapidez dos bens materiais. Os sentimentos são mais lentos do que a tecnologia, mas sem eles, esta não vale nada.
__________
Renato Janine Ribeiro
A Neve Quente dos Trópicos. O Brasil seja família real 
UPorto Press  16,20€

COMPRAR O LIVRO