Sara Duarte Brandão: Uma efabulação tão rica que retempera a realidade de outros acontecimentos

CRÓNICA
| agostinho sousa

A leitura começa num subtil enquadramento de que a «história é inspirada na Igreja Paroquial de São Pedro da Afurada e nas figuras religiosas desenvolvidas pelo escultor Altino Maia», mas engane-se quem pensa que vai ler uma linear história verídica. A efabulação é tão rica que retempera a realidade de outros acontecimentos, outras personagens e até os santos são outros.
Os tempos da narrativa alternam-se, mas não confundem e, isso sim, aliciam a leitura, que segue a gosto, para compreender o que sucederá àquelas personagens «reais». E entre estas há um edifício, uns santos, uma comunidade (com os seus arraigados hábitos) e a poesia, sempre presente, desde a primeira página. Uma poesia que não é formal, intercalando versos, mas dissimulada, que nos sugere leituras alternativas, apresenta momentos oníricos, que delicia e cria leituras ao gosto e criatividade de cada leitor.
As dezenas de curtos capítulos, das três partes em que o livro é dividido, conseguem ter o sumo necessário para o que vamos descobrindo.  Não há ali uma gota em desperdício. E, isso, é trabalho difícil de depuração e enriquecimento que este livro transmite. «Um livro tanto é um pedaço de tempo perdido com uma trama infinita». E até os títulos de cada capítulo sugerem pistas do que irá suceder, levando à sua releitura depois de terminado cada capítulo.
Trata-se do primeiro livro de uma jovem escritora, acrescido à publicação recente de um livro de poesia – que recomendo – onde se deteta uma qualidade na síntese e na efabulação que o futuro, suspeito, confirmará em novas aventuras.
Leem-se diversas histórias que se entrecruzam, onde as mulheres aparecem com uma força suplementar. A morte e o seu pensamento também. A perda. A Maria Teresa a que chamam a «louca da vila». A religião e os seus dogmas, mas também a religião através de uma crença livre, ou como dizia o avô a Maria Teresa «que a melhor oração era a poesia. Por isso, sempre que se sentavam para comer ou antes de se deitarem, quando o avô a obrigava a dar graças a Deus, Maria Teresa dizia poemas».  Belo princípio!!
A trama é de luta pela liberdade em busca de algo mais do que o preestabelecido, a luta contra os sólidos preconceitos na comunidade. Porque «De que nos serve prender um pássaro que voa?».
E nessas vidas o futuro de cada um está presente, como uma recordação, como quando Maria Teresa «entrou no escritório do avô para sentir o cheiro dele entranhado nos livros».
E também uma história de amor entre Maria Teresa e Adílio que merece ser lida, sem cair na tentação de deixar aqui qualquer pista. E pelo meio há uma aldeia, um padre que quer uma nova igreja, um arquiteto que tem de defender esse projeto – como arquiteto que se preze -, mais umas quantas personagens e os santos (da casa) que dão o título ao livro, e simbolizam esse necessário e permanente combate pela liberdade.
Uma última palavra para as coincidências que a leitura nos pode trazer: no dia do falecimento repentino de um camarada, com 57 anos, li no Capítulo 23 – Idade para morrer, da Parte Dois do livro, o seguinte:
«Avô? Eu acho que o avô não tinha idade para morrer…»
«Eu acho que ninguém tem.»
E, enquanto vivemos, disfrutemos a leitura nesses subtis detalhes que engrandecem, como quando o «arquiteto entendeu a oração como um eco interior. Nesse caso o edifício era apenas a estação que nos leva a uma viagem introspetiva. Quanto mais preenchemos esse lugar de ostentação e cor, mais distraídos ficamos do seu objetivo principal, o de nos embelezar a alma.»
E, já agora, quem não «sente saudade de uma época em que o corpo não vivia cativo dos rótulos da função, em que um olhar beijava. Sabem quando um olhar beija? E sentimos um arrepio percorrer a pele, da nuca aos pés, sem destino? O nosso primeiro beijo é sempre com os olhos. E tem de ser verdadeiro.»
E, por fim, verdadeiro e real: este livro foi vencedor do Prémio Literário Cidade de Almada 2023. Não foi um acaso. Parabéns à autora.
Espinho, 30/06/2025
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Sara Duarte Brandão [LER entrevista]
Quem tem medo dos santos da casa
Publicações D. Quixote  17,70€

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