Tiago Rosa Gaspar: “O fenómeno abrange diferentes tipos de condutas”
Um livro que mexe connosco e consolida de forma muito concreta a importância e a dimensão do flagelo da corrupção. Segundo o Parlamento Europeu, o impacto da corrupção cifra-se em 18 mil milhões de euros. O autor afirma: “verifica-se inequivocamente uma cultura excessivamente permissiva em relação a certas condutas, as quais acabam por se disseminar de modo inadvertido e irresponsável, fomentando a perpetuação dessas práticas corruptivas”.
Tiago Rosa Gaspar Tiago Rosa Gaspar é investigador na área da prevenção e combate à corrupção, passou pela embaixada de Portugal em Washington e pelo gabinete do subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Económicos e Sociais. É ainda membro fundador da All4Integrity, uma associação apartidária da sociedade civil dedicada à prevenção e combate à corrupção.
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P-Qual a ideia que esteve na origem do seu livro “Decifrar a corrupção-Rumo a uma cultura de integridade em Portugal”?
R-A génese deste livro advém de um paradoxo notável: a corrupção é amplamente reconhecida como um fenómeno grave e prejudicial, mas persiste um acentuado desconhecimento sobre o assunto, inclusive entre as elites políticas e económicas. Ademais, embora existam múltiplos estudos e relatórios técnicos, não se dispunha, até então, de uma obra destinada ao público em geral que conjugasse rigor com acessibilidade. Nesse sentido, Decifrar a Corrupção – Rumo a uma Cultura de Integridade em Portugal foi concebido para suprir essa lacuna, oferecendo uma análise clara e estruturada do fenómeno, bem como propostas que contribuam para a consolidação de uma cultura de integridade no país.
P-O fenómeno da corrupção ocupa o espaço mediático, as conversas de café, o discurso dos partidos populistas e gera uma percepção de ser um problema insolúvel: comecemos, no entanto, pelo princípio. Do seu ponto de vista, quais as principais razões da existência da corrupção em Portugal?
R-Poderíamos dizer que a principal razão para a ocorrência de práticas corruptivas é o desejo da obtenção de benefícios pessoais. Contudo, essa vontade individual é manifestamente insuficiente para justificar um fenómeno sistémico e complexo, que pressupõe uma multiplicidade de fatores e atores que vão muito além dessa motivação. Por esse motivo, recorre-se a teorias para desconstruir as relações entre esses elementos. Não obstante, verifica-se inequivocamente uma cultura excessivamente permissiva em relação a certas condutas, as quais acabam por se disseminar de modo inadvertido e irresponsável, fomentando a perpetuação dessas práticas corruptivas.
P-Refere que o impacto da corrupção se cifra em 18 mil milhões de euros: como chegou a este número astronómico?
R-Esse número foi avançado pelo Serviço de Estudos do Parlamento Europeu, em 2016. A estimativa decorreu de uma análise que combinou, em primeiro lugar, uma revisão sistemática da literatura académica existente – conduzida por meio de uma estratégia de snowballing – e, em segundo lugar, um conjunto de modelos econométricos aplicados aos diversos tipos de prejuízos associados à corrupção no contexto da União Europeia. A recolha de fontes contemplou não apenas um vasto conjunto bibliográfico, mas também materiais subsequentemente identificados nas referências dessas obras e nas sugestões de peritos entrevistados. Os procedimentos estatísticos e de modelagem, permitiram quantificar os custos diretos e indiretos decorrentes da corrupção, resultando no montante global referido de 18 mil milhões de euros.
P-Passaram 50 anos sobre o 25 de Abril e há uma tentação crescente de alguns em associar a corrupção à democracia: concorda com essa visão?
R-Compreendo a existência dessa tentação, mas não concordo de todo com essa visão. É justo afirmar que, em democracia, a notoriedade atribuída à corrupção é bastante superior – mas por bons motivos. Tal acontece porque os regimes democráticos, detentores de sociedades plurais e interventivas, são – substancialmente – mais abertos e escrutinados do que os regimes autoritários. Em contrapartida, por vicissitudes múltiplas e para infortúnio das suas gentes, são raras as ditaduras que primam pelo bom desempenho dos seus governos, pela legalidade das suas ações e pelo acesso equitativo dos cidadãos aos serviços e benefícios providenciados pelo Estado. Ou seja, a diferença reside no grau de ameaça que a corrupção representa para as democracias. Ao passo que para as primeiras é uma afronta aos seus alicerces e aos seus valores fundamentais – como a igualdade, a liberdade ou a justiça –, para as segundas, tendo os valores outra relevância, o mesmo já não se verifica.
P-Podemos e devemos falar de corrupção ou de corrupções? Podemos falar de pequena corrupção e de grande corrupção? São caras da mesma moeda?
R-Podemos falar em “corrupção” ou “corrupções”, uma vez que o fenómeno abrange diferentes tipos de condutas. Podemos também distinguir “pequena corrupção”, expressa em atos quotidianos ou pontuais, como subornos de menor valor, e “grande corrupção”, praticada ao mais alto nível político ou empresarial, com impactos económicos e sociais muito mais profundos. Ainda que sejam fenómenos distintos em termos de escala e consequências, partilham a mesma lógica subjacente: o uso indevido de poder (público ou privado) para obtenção de vantagens indevidas. Por essa razão, podem ser vistas como diferentes faces do mesmo problema, na medida em que ambas corroem a confiança nas instituições, prejudicam a alocação justa de recursos e enfraquecem a coesão social.
P-Para muitos cidadãos, a corrupção parece estar a entrar num processo de “normalização” e, sobretudo, de inevitabilidade: o célebre “são todo iguais”. Será mesmo assim?
R-Verifica-se, de facto, uma cultura excessivamente permissiva em relação a certas condutas, as quais acabam por se disseminar de modo inadvertido e irresponsável, fomentando a perpetuação dessas práticas corruptivas. Daí o empenho deste livro em fomentar uma cultura de integridade – ou seja, em fomentar um conjunto de normas sociais que promovam a transparência e a integridade. Não obstante, importa ressalvar que a corrupção não é um vício exclusivo dos nossos tempos, nem da nossa geografia, nem da nossa cultura, nem de nenhum quadrante do espectro político. Assim, de nada valerá alinharmos em discursos populistas que apregoam frequentemente ideias como a de que “isto é tudo uma cambada de corruptos” ou que “são todos iguais”, porque são infundados, falsos e contraproducentes.
P-Sendo um fenómeno que percorre muitas áreas da sociedade e do poder, o que podemos fazer para, enquanto cidadãos, ajudarmos a combater a corrupção?
R-Uma luta eficaz contra a corrupção depende, em grande parte, da capacidade dos cidadãos de exigir a responsabilização dos agentes políticos e de denunciar eventuais indícios de práticas ilícitas. Para tal, é fundamental que recorram tanto a canais formais (por exemplo, o voto, as audiências públicas e as ações coletivas) como a vias informais (participação em fóruns digitais ou outras iniciativas de mobilização social). Paralelamente, as organizações da sociedade civil representam um pilar essencial nesse processo, pois, contribuem para reforçar a transparência e para exigir que atores públicos e privados prestem contas. Frequentemente, essas organizações completam ou amplificam iniciativas governamentais, sobretudo, em contextos onde o poder público se mostra ausente ou insuficiente para atender às necessidades da comunidade.
P-Finalmente, que mecanismos poderia o Estado introduzir ou reforçar para limitar as condições ideais em que a corrupção ocorre?
R-Um dos objetivos imediatos de qualquer reforma do sistema de Justiça deve ser o restauro da confiança pública. Esse processo passa, entre outros fatores, pela melhoria dos processos de seleção dos seus principais responsáveis, como o Procurador-Geral da República, o Provedor de Justiça, os juízes do Tribunal Constitucional e os membros dos conselhos judiciários. A realização de concursos transparentes, pautados por critérios de mérito e acompanhados de mecanismos de prestação de contas, revela-se fundamental para a identificação e escolha dos candidatos mais qualificados e íntegros. Paralelamente, é essencial atentar aos organismos de controlo – identificados no livro –, cuja reestruturação, tanto no plano orgânico como nas competências atribuídas, se afigura urgente. Em conjunto, estas medidas contribuiriam para consolidar uma cultura de integridade no plano institucional, capaz de restringir de forma efetiva as condições propícias à corrupção.
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Tiago Rosa Gaspar
Decifrar a Corrupção-Rumo a uma cultura de integridade em Portugal
Publicações D. Quixote 16,90€