Violência: “Não silenciar é o passo mais importante”

As múltiplas formas de violência e de como o silêncio não é (nunca deveria ter sido) de ouro. A denúncia do flagelo da violência doméstica quando, mais do que nunca, importa não silenciar e proteger as vítimas.
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P-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro O Silêncio não é de Ouro?
R- Poderíamos referir várias ideias aqui. Mas a eleger apenas uma, parece-nos que o conseguir restituir a estes casos a sua história, a sua cara, a sua identidade própria e a sua alma, será a mais importante de todas.Todos os dias nos deparamos com números e estatísticas que nos falam dos crescentes casos de violência doméstica e de morte por violência doméstica, mas não só. Os casos de bullying, seja na escola seja no trabalho, os crescentes casos de cyberbullying através das redes sociais, os casos de xenofobia e de escravidão humana, que andam de mãos dadas com as questões relativas à imigração, os casos de abuso sexual que toda a vida foram silenciados… Se, por um lado, é importantíssimo que estes casos sejam conhecidos, porque é sinal que nos merecem cada vez mais atenção e cuidado, por outro é também importante que não percam a sua identidade própria: por detrás destes números existem pessoas que sofrem e que morrem, pessoas que tiveram a coragem de se chegar à frente para apresentar uma queixa. E essa história merece ser contada. Não tem que fazer apenas parte das estatísticas. Recentemente deparámo-nos com um caso de uma figura pública que, recorrentemente, agrediu a ex-namorada. Uma história horrorosa que, muito naturalmente, recebeu bastante destaque da comunicação social pelo simples facto de ser uma figura pública. E ainda bem que recebeu todo esse destaque. Mas há outras histórias, que envolvem figuras que não são públicas e que merecem o mesmo destaque. E, principalmente, quando a justiça portuguesa é pouco célere e até um bocadinho laxista na avaliação do Conselho da Europa. Em Maio recebemos um relatório do GREVIO (o grupo de especialistas independentes do Conselho da Europa de prevenção e combate contra as mulheres) a alertar para uma série de falhas no sistema judicial, a alertar para as sanções brandas, as atitudes patriarcais por parte dos juízes e procuradores que, quantas vezes, privilegiam a reunião familiar onde não há união possível e até a demora na recolha de provas onde esta é urgente… O que quisemos fazer aqui foi contar histórias reais, na primeira pessoa. Histórias de pessoas que não são mediáticas mas que merecem toda a nossa atenção e cuidado.

P-Os casos relatados no livro pretendem mostrar uma realidade muito mais abrangente de vários tipos de violência que geram vítimas em Portugal: razões desta opção?
R-A sugestão não foi nossa, por acaso, foi do João Lázaro, o presidente da APAV. A nossa ideia inicial era focar-nos na violência doméstica e, também, na violência psicológica. E ainda que toda a violência seja também psicológica, estávamos focadas naquele tipo de abuso que nunca chega à polícia nem aos hospitais… aquele que passa pelo bullying, pela manipulação, pela humilhação, pelo  gaslighting e por aí fora… Quando apresentámos a proposta ao João ele sugeriu-nos que alargássemos o nosso ângulo aos vários tipos de violência com que se debate diariamente a APAV e que isso fosse um tributo aos 35 anos da associação. Fazia todo o sentido.

P-No decorrer da pesquisa e escrita desta obra, para além das alarmantes e recorrentes notícias sobre violência doméstica, que factos menos mediáticos encontraram e que mais vos surpreenderam?
R-O que mais nos surpreendeu foram mesmo as histórias reais com que nos deparámos. Algumas delas, até mesmo as mais terríveis, são ao mesmo tempo histórias de redenção. E essas são surpreendentes. Histórias de pessoas que deram a volta por cima, sem a mais pequena noção de que o fizeram – porque aquilo que era mais difícil fazer elas conseguiram fazê-lo – e só esperamos que elas cheguem também a essa conclusão. Outra das coisas que nos surpreendeu, e essa um bocadinho mais preocupante, foi o facto de termos percebido que essas mesmas pessoas prescindem muito facilmente de um fundamental apoio psicológico. Ninguém fica imune a feridas destas. Quando falámos sobre o assunto com Daniel Cotrim, um psicólogo da APAV, o que ele nos disse foi que quando o aprofundamento chega a um determinado ponto de dor, as pessoas desistem.

P-Em plano século XXI, as situações de violência de diversa natureza persistem: porquê?
R- Poderia haver várias respostas para essa pergunta, segundo fossem dadas por sociólogos, psicólogos… O que temos de ter em perspectiva é que a humanidade mudou muito em termos tecnológicos, mas pouco em termos de consciência. Portanto, o século XXI não é muito diferente do que era o século XX, mas precisamente por isso temos o dever de contribuir para que mude. Há factores que facilmente são identificados neste fenómeno, como o medo, a pobreza, as próprias histórias de violência ou abuso a que cada um dos abusadores já foi submetido. Há múltiplos factores. A única coisa que podemos dizer é que esperamos que as pessoas estejam cada vez mais atentas a essas situações, que se queixem daquilo que acontece com elas e/ou com os outros. Que as nossas polícias sejam cada vez mais céleres na resposta a estas queixas. Que os nossos juízes sejam cada vez mais implacáveis em punir estes casos e que os nossos procuradores sejam cada vez mais proactivos em encontrar provas de crime. Acho que não podemos pedir mais nada.

P-Além do muito meritório trabalho da APAV, como resolver esta (como lhe chamam) “guerra civil subterrânea”?
R-A guerra civil subterrânea, imaginamos, poderá vir a perder força, em parte, com o fim do provérbio “entre marido e mulher não se mete a colher”. Porque, às vezes, não há como não meter a colher. Em 2000 a violência doméstica foi declarada crime público, foi um grande passo no combate a esta situação. Mas há muito mais para resolver ainda. Por outro lado, quando falamos em “guerra civil subterrânea”, referimo-nos também aos números e às estatísticas que vão crescendo e que vão abafando as histórias que por detrás deles se escondem. É importante que essas histórias cheguem a público.

P-De que forma todos nós, cidadãos, podemos contribuir: não silenciar é o primeiro passo mais importante?
R-Não silenciar é o passo mais importante, sem dúvida. Tudo o que é crime público passa por todos nós. Dar apoio, estar atento, denunciar, exigir… a nossa lei é pouco célere, sabemos isso, mas não podemos ficar calados. Há muita coisa para resolver ainda, mas é fundamental que quem é vítima saiba a quem pedir ajuda e que se sinta protegido. Nesse campo, todos nós, cidadãos, temos um papel fundamental.
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Inês Queiroz/Fátima Moura da Silva
O Silêncio não é de Ouro
Oficina do Livro  15,90€

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