Muito abandono e recomeço

CRÓNICA | Rui Miguel Rocha

Muito abandono e recomeço, como Vinícius. Vou então misturar os versos do Francisco.
“É uma ocupação terrível, essa de alimentar a paixão//e a morte com o mesmo ardor e o mesmo frio.
É a luz da noite, as ruas, o silvo. Abandonados/estamos no universo, sós, muito sós.
Tão de repente se morre ou anoitece.
Uns adormeceram na neve – outros, cansados,/passam domingos esperando a morte.
É como se nos despedíssemos/e uma alegria mais intensa para sempre nos habitasse.
A vida perfeita é breve.//Cada palavra é um resumo-e, em cada palavra, quanto deixas de teu?
Nenhuma/palavra é capaz de dizer adeus com aquela perfeição/das coisas que comovem.
Se há crepúsculo, adiantamos a hora; se anoitece/fechamos os olhos, não havemos de morrer.
Espalho faróis sobre os mapas.
Estar quieto basta-te, se é a ti que procuras.
Não me escondas/do frio/por me guardares/no coração.
Nesta altura do ano, não chega a amanhecer
Pensar em ti como/um sábado
Permanentemente nós esquecemos um do outro:/é esse o destino dos grandes amantes
Ou um amor que saiba dançar no meio do fogo
Ignoro a fome, a escrita sem paixão, o nome sem sombra/e sem outro nome a dizê-lo, as águas frias, o que se abandona.
Perdemos muitos amigos, a face da lua, o corpo.
Comungaram dos cenários quase perfeitos.
Colecionamos os rostos que amámos, juntamos as mãos,/inventamos um lugar.
Nada suporta já o peso do amor,/a alegria do futuro.
Uma única vez se diz o nome que nos fez/voar sobre as searas.
Dança junto de mim, morre lentamente a meu lado.
Não há pássaro que não repouse/nem olhar que não adormeça.
Flores que resistem ao temporal
A alma nunca será essa coisa/perfeita
Não entregues a alma à literatura; em vez de poeta,/prefere a doçura do geógrafo, do colecionador de retratos.
O amor é uma assunto igual em toda a parte
Já não há batalhas senão no interior do coração,/no interior da casa, no interior do mundo/escrito em silêncio, como numa iluminura.
A rapidez entontece, magoa./A gente que passa é demasiada.
A rapidez dos relógios
Mais tarde, a felicidade é sempre uma coisa/que viveu na infância, o aroma dos teus dedos/se te afastas, a meio da noite.
Aprende-se devagar a dominar/a tristeza.
E de medo não se sofre diante do amor
Mas nenhuma perfeição/é essencial diante do seu corpo tão precário
Uma biografia/é um monumento, arrasta muitas vozes pela/noite, uma sede sem razão.
A quem entrego a voz, dou quase tudo.
O lado de fora de um fruto.“
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Francisco José Viegas
Deixar um Verso a Meio
Imprensa Nacional-Casa da Moeda  23€

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