André Osório: “Olhar para o outro é sempre um olhar para nós”
1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Sala de Operações»?
R-No meu primeiro livro de poesia, dividido em três partes, procurei que existisse uma evolução temporal –idade infantil, adulta e terceira idade— a cada parte. Os temas biográficos nele presentes são condensados e excluídos de si na estrutura do livro, que chama para seu centro enquanto exerce uma força gravitacional, fazendo parte dos seus temas poéticos. Em poucos momentos o biográfico é verdadeiro. Tem o propósito mais formal de figurar uma entrada no texto, íntima, que produza um efeito de proximidade e de partilha de um “eu” com as palavras que o fixam e movimentam. Observação da gravidade é este processo de partilha. O sujeito é posto em causa, existe não existindo. A minha gama de interesses, no entanto, alargou-se desde a sua publicação. Tomei consciência de uma certa ideia de centro, intimamente ligada a uma de medo e passividade nas mais diversas áreas da sociedade e história poética; o que me leva não tanto a uma politização do meu projecto literário, mas a um alargar temático subjugado a uma ideia, já presente no primeiro livro, de controlo formal de um “eu” que coloca, nesse mesmo gesto, em causa aquilo que é e diz. Se em Observação da Gravidade (2020), no poema que inaugura a terceira parte – “Museology (1938)” –, o movimento de queda de Ícaro no mar, ignorado pelas outras figuras pintadas e pela própria perspectiva usada no quadro de Bruegel (“Landscape with the Fall of Icarus”), é extensível à figura do espectador/leitor no museu, que “pende sobre o acrílico” (citação do poema), tendo esse movimento fotografado de fora, então, neste segundo, procuro reunir numa figura de sujeito a sua própria virtualidade, equiparada e jogada com formas de virtualidade que observo. Uma procura de conjugar a forma literária (poesia como forma e consciência de o ser) e a forma do mundo, as suas formas de pensamento e alienação entranhadas na forma poética, optando ainda por algumas imagens e situações biográficas (ou ficcionalmente biográficas, pela aparente proximidade às situações) de modo a localizar e desviar, problematizar aquilo que se evoca a experiência do próprio e o espectáculo do “eu” e do mundo na escrita. Interessa-me muito uma certa teatralidade na poesia que tenho escrito, um efeito de representação, ou de estar em palco, próximo do que fazem Samuel Beckett e Harold Pinter, entre outros. Quem observa é levado à voz repetida das personagens, presas em algo e revelando-se na mesma repetição e no que deixam por dizer. O centro gravítico que procuro não está já num centro do livro, mas no interior da própria voz, constituída de palavras, afastada de si nelas. Esta é, também, a meu ver, a posição, hoje, do humano no mundo.
2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Houve várias ideias em convulsão em mim que deram origem a este livro. Nomeadamente, como é que a poesia pode coexistir com prosa, ensaísmo, teatro, sociedade, política e biografia, de modo que os seus limites se expandam e não se reduzam. Essa abertura é naturalmente contra-nacionalista. Como na vida, absorvemos e crescemos a partir de tudo de todo o lado. Só assim é possível uma evolução seja do que seja. A origem deste livro, digamos, existiu com a escrita de um poema que o integra e que, para mim, representou uma mudança poética que deu conta de uma mudança gradual de um ponto de vista pessoal sobre o mundo e sobre a poesia. O poema é o primeiro da segunda secção do livro (“Sala de Operações”), chama-se “Formas da Metafísica”. A aceitação deste poema foi a aceitação dessa mudança premente na minha poesia, ou pelo menos numa forma de escrever que possa coexistir, de novos modos, com temas que estavam já presentes no primeiro livro. Refiro-me a aceitação também no sentido em que o meio da poesia portuguesa ainda se prende com absolutismos metafísicos e substituição de a linguagem carregar significado pelo poema como condução para o silêncio. Isso não me interessa. E também não interessa a alguns novos poetas que gosto muito e leio.
Depois é um livro com várias influências, cuja interrelação estive na base da sua criação. Desde o stand-up em palco na peça Truth’s a Dog must to Kennel, de Tim Crouch, a séries televisivas que informaram poemas em particular, a filmes ou livros-ensaio (o caso onde isto está mais concentrado é no poema “O Jogo”, que joga com referências que vão desde o Citizen Kane, de Orson Wells, ao The Game, de David Fincher, e ao livro Massa e Poder, de Elias Canetti), a ocorrências na minha vida às quais procuro ligar e misturar temas não-pessoais que vou trabalhando ao longo do livro (apesar disso de um modo cronológico, é um livro que existe também já na releitura de si próprio), desde um poema sobre as salinas de Tavira com as quais todos os Verões cresci e a visita há dois ou três anos a uma fábrica de sal, a um poema sobre um conto que escrevi com 12 anos sobre um banco que observava o tempo e as pessoas, conto que perdi algures. O livro tem uma ordem de pensamento que perpassa várias coisas e que as usa para se dizer. Procuro desfazer formas a partir de dentro, relacionar metaforicamente, aproximar, para que o livro exija uma relação com o leitor que seja emocional, pessoal, mas ao mesmo tempo reflexiva, de crítica da memória (que herdamos e que define toda a rede de relações, de todos os tipos, em que vivemos) e de um presente pouco presente. Olhar para o outro é sempre um olhar para nós, reprimimos o outro como nos reprimimos a nós.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-De momento não posso especificar, mas tenho uma ideia que já estou a desenvolver. Isto quanto à poesia.
__________
André Osório
Sala de Operações
Guerra e Paz 14€
André Osório na “Novos Livros” | Entrevistas