As famílias das clientes bonitas e ricas serão sempre obscuras e complicadas
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Para os apaixonados por Chandler e por Marlowe, esta capa é impossível de aturar, assim como a deturpação do título (aliás, como explica Banville, foi o próprio Chandler que o deixou nos seus escritos): The Black Eyed Blonde para O Caso da Loira Misteriosa.
Felizmente o mesmo não acontece com o resto do livro onde o ambiente e os diálogos fazem justiça ao autor original, com o seu cinismo e ironia habituais. Afinal “uma loura de olhos negros não é uma combinação que se veja…frequentemente. Tentei não olhar para as pernas dela.” Ah, esse Marlowe, sempre perdido por mulheres bonitas, a dar o corpo ao manifesto com a carteira vazia de dólares. Sim as mulheres “aquele sorriso era como alguma coisa a que ela tivesse chegado um fósforo há muito tempo e deixasse ir ardendo sem chama. Tinha um lábio superior maravilhoso, saliente, como de um bebé, de aspecto suave e um pouco inchado, como se tivesse beijado muito recentemente, mas não bebés.” Mas também os bares e os barmen, sempre prontos a acolherem e ouvirem os caprichosos humores de detectives desorientados “fiquei sentado a pensar nisto e naquilo. Por exemplo, porque é que o primeiro golo de cerveja é sempre muito melhor que o segundo? O tipo de especulação filosófica a que eu era dado, daí a minha reputação de detective pensador”. Não esquecendo a honestidade e a obstinação que podem custar um olho negro ou pior, muito pior por vezes. E a relação de amor/ódio com os polícias “Joe tivera uma vez, por pouco tempo, a ideia de me acusar de cumplicidade num homicídio premeditado, e isso é o tipo de coisa que cria um elo entre duas pessoas.”
É sabido que as famílias das clientes bonitas e ricas serão sempre obscuras e complicadas – Deve ser irmão de Mrs. Cavendish – disse eu. – Devo? – Lançou-me um olhar teatral de olhos esbugalhados. – Deve pertencer à família, pelo menos. É um animalzinho de estimação ou uma ovelha negra?” Marlowe, o abelhudo insolente. Robert B. Parker já tinha tentado exumar Marlowe com algum sucesso, mas Banville não lhe fica atrás, e a Los Angeles é perfeita, assim como o calor dentro do carro a arder ao sol e as esperas infinitas a que os detectives estão sujeitos na companhia dos cigarros (felizmente não se caiu na tentação de fazer de Phillip Marlowe um abstémio ex-fumador): “ E durante algum tempo passeei pelo corredor, fumei um cigarro e fiquei à Janela com as mãos nos bolsos, a observar o trânsito em Mission Road. Ser detective particular é ter uma vida empolgante”, comprovado por: “faz parte da história da minha vida, ficar sentado dentro de automóveis pela noite dentro, com o cheiro do tabaco velho no nariz e os gritos das aves noturnas.”
De resto, tudo normal, mortos que desaparecem e reaparecem, vivos espancados e mulheres fatais. E sim, algumas tiradas filosóficas à Marlowe original “Não, havia outra pessoa, e agora sabia quem era. Acho que já o sabia há algum tempo, mas é possível saber algo e ao mesmo tempo não o saber. É uma das coisas que nos ajudam a suportar o nosso fardo na vida e a não endoidecermos.”
Por último, uma lição de vida que não penso seguir “De certa forma, o álcool não parece uma coisa tão prejudicial quando é bebido em copo de papel.” Mesmo assim prefiro o vidro, ou o cristal, mas isto não é Scott Fitzgerald.
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John Banville
Marlowe – O Caso da Loira Misteriosa
Minotauro 18,90€