Carlos Tê: Uma reflexão sobre a sociedade e os seus excluídos

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Sou suspeito, gosto do homem. Encontrei-o duas vezes fora das canções do Rui, uma na fila do supermercado quando lhe disse: “o senhor é extremamente parecido com o Carlos Tê”, ao que a senhora da caixa de sobrancelhas em til ripostou “é famoso?”. Outra na Almedina do Arrábida, os dois a olhar para um escaparate de livros onde arrisquei “não encontro os contos supranumerários” e ouvi “sabe que a história do Lou Reed no São João é verdadeira?”. Quando morreu, o Lou, meti os meus quatro filhos com óculos de aviador em homenagem. Mas estou a fugir ao assunto, e que assunto! Arquibaldo que vem de Archibald, grande jogador de futebol escocês só porque sim. E assim começo a leitura do romance e entro no submundo do Porto onde vagueiam grafiteiros, prostitutas, drogados, ladrões, polícias, sem-abrigo, todos com cinismo e cultura fulgurante. Francisco Frade é um assistente social com tom de detective privado, um Marlowe à moda do Porto, misógino quanto baste, substituindo o jazz pela bossa nova. Ao fundo o Douro “a névoa descia para o rio, era um vampiro de algodão recolhendo-se à urna das águas.” Um duro de coração mole “traz-me um sintoma de nuvem” no meio da cidade perdida. A explicação para tudo na  ponta da língua “Uma prole de santos apeou as divindades greco-romanas, São Cristóvão sucedeu a Mercúrio, que sucedeu a Hermes, São João Baptista deu lugar a David Bowie, Santa Clara a Diana de Gales, tudo se repete sob outro véu”.
Uma reflexão sobre a sociedade e os seus excluídos, os mundos à parte, os nossos tempos, todos os tempos. “-Confundo a Medeia com a Antígona. -Confundir as coisas é o maior problema do nosso tempo.” Tudo tão superficial e supérfluo neste mundo dominado pelos símios, sabendo ou não que “o réptil palpita no fundo do cérebro pronto a saltar”, isto para quem entende de evolução. Para quem não entende, resta viver com a dor de viver: “O álcool enxagua a velha dor existencial que só a arte e a religião atenuam, devia haver um instrumento de medir a dor, um dolorímetro.” Assim como o sexo ou o amor numa frase que atravessa todo o livro: “o sexo está longe de ser tudo e mais ainda de ser nada.” E, como o sexo, tudo o que nos faz sentir vivos, “as magníficas coisas inúteis, como dançar.”
Mas nem só de mundo vive o homem, ou a mulher, ou o ateu: “a própria ausência de Deus é um acto religioso porque pressupõe uma busca.” E, por isso, Francisco percorre as ruas e não desiste dos desistentes, apesar de ele mesmo ser um, ou não. Não se chega a saber. O que se sabe é que a mulher é muito melhor que o homem (salvo excepções) e que “nós somos meros aspersores de relva, a pele da mulher brilha durante a ovulação”.
Assim como a melhor frase de engate de sempre: “podemos celebrar este reencontro com uma transgressão no Sheraton. Daqui a cem anos seremos pó, mas a memória desse momento ficará registado num qualquer ficheiro poético do universo.”
Para acabar, Arquibaldo, ou “Vai jogar o Archibald, do Tottenham” e o seu pensamento: “pode um coração amar alguém à revelia do seu utente?”, ou o seu fim: “O meu nome é Arquibaldo, cavaleiro da Casa do Bem.”
Gostaria de pensar que o meu também.

Entrevista com Carlos Tê sobre ArquibaldoLER
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Carlos Tê
Arquibaldo
Porto Editora  16,60€

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