Daniel Pereira: Compreender a história de Cabo Verde

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Um Mar de Conflitos»?
R-Nenhuma, até à localização das fontes que conduziram, fatalmente, à elaboração desta obra – Um Mar de Conflitos. Digamos que o nascimento do livro é produto do acaso. Não obedeceu, com efeito, a nenhum plano previamente estabelecido, como habitualmente acontece em qualquer tipo de pesquisa de campo, no domínio das Ciências Sociais e Humanas, e não só. A verdade é que, na busca de elementos de arquivo, que cimentassem um projeto de investigação de décadas, Lutas Sociais e Políticas em Cabo Verde, na 1.ª Metade do Séc. XIX, processo que ainda decorre, lenta mas seguramente, deparei-me com uma mole documental que, depois de desfolhada, nos obrigou, instintivamente, a ir mais além, dando a conhecer ao público leitor, essa importante descoberta, considerando o conteúdo e as características desse mesmo conjunto de documentos, que a sorte se encarregou de colocar sob o nosso escrutínio, enquanto investigador de raiz. E foi, também, esse corpo documental, que acabou liderando/indicando as trilhas que as investigações iriam seguir, passo a passo, até chegarmos ao que chegou aos escaparates, depois de quase três anos de trabalho penoso, mas sempre intenso, consequente e firme. E nasceu, deste modo, Um Mar de Conflitos – Marcelino Rezende Costa Vs. Manoel Antonio Martins.

2-Quem são e que importância têm os dois protagonistas desta investigação: Marcelino Rezende Costa e Manuel António Martins?
R-Marcelino Rezende Costa, era filho e neto de Inconfidentes Mineiros (de Minas Gerais, Brasil), que foram degredados, depois de processo de Devassa sobre o crime perpetrado contra a Coroa portuguesa, para a Guiné (o seu avô, José de Rezende Costa) e para Cabo Verde, vila da Praia (o seu pai, José de Rezende Costa Filho). Sublinhe-se, que tanto um como outro pertenciam à elite mineira. A mãe de Marcelino Rezende Costa, Luísa Barbosa da Costa, era natural de Cabo Verde, e tinha, também, a sua quota-parte de revolucionária, já que parece ter estado envolvida num levantamento contra o Governador de Cabo Verde, em 1811, tendo sido até degradada para a ilha do Maio. Marcelino era natural da vila da Praia, ilha de Santiago, tendo nascido em 1800. Entre os 9 e os 18 anos estou no Rio de Janeiro, na companhia de seu pai, que entretanto regressara ao Brasil, onde foi deputado da Constituinte brasileira. Seguindo as pisadas do progenitor, foi, durante grande parte da sua vida, funcionário público, da área Aduaneira e Fazenda, tendo chegado ao topo da carreira, enquanto Escrivão Deputado da Junta da Fazenda Pública da Província de Cabo Verde. Quando morreu, em 1845, era um negociante forte, estabelecido da praça da Praia e, igualmente, Vice-cônsul da França nessa mesma localidade. Politicamente era um liberal e defensor da Carta Constitucional, a que se manteve sempre ligado, com a mais profunda convicção.
Quanto a Manuel António Martins, trata-se de uma figura cujas verdadeiras origens se desconheciam, quando chegou a Cabo Verde, ilha da Boavista, nos primórdios de 1793, apenas com 21 anos de idade. Nessa ilha casou com uma filha do Sargento-Mor local, acabando por fazer fortuna no Arquipélago, tornando-se num dos seus maiores capitalistas, como homem de negócios bem estabelecido, sobretudo nas áreas do comércio do sal e da urzela, uma planta tintureira muito utilizada na indústria de lanifícios nas fábricas europeias, designadamente na Inglaterra, Flandres, etc. Sem dúvida, um homem bem-sucedido, mas igualmente um verdadeiro aventureiro que tendo o engenho e a arte de conseguir construir uma Casa comercial de nomeada e, com o cabedal, obter força suficiente junto do poder em Lisboa ou Rio de Janeiro, para levar de vencida os seus projetos.  Politicamente, movia-se bem nos corredores dos Ministérios no Terreiro do Paço, e moldava as suas convicções conforme sopravam os ventos da política, tanto aparecendo como liberal, como absolutista, conforme as suas conveniências, tentando tirar o melhor partido das oportunidades que iam surgindo de um lado ou de outro. Chegou a obter mesmo as mais altas honrarias, tendo sido Deputado por Cabo Verde, na Constituinte de 1821 e, finalmente, Prefeito de Cabo Verde, entre 1834 e 1835. Para quem não está devidamente elucidado, esse cargo correspondia ao de Governador, o mais alto responsável político e administrativo de todo o território da Colónia de Cabo Verde, que abrangia, igualmente, a região da Guiné, dita portuguesa.
O embate entre estas duas figuras históricas, acabam corporizando as lutas liberais em Cabo Verde, já que, dada a proximidade entre Lisboa e Praia, tudo se repercutia rapidamente nas nossas ilhas, com a maior das facilidades, exacerbando, quase sempre, os ânimos dos contendores políticos em presença.
De um lado, um Liberal e Fiscal das operações fazendárias, arrecadador dos impostos e direitos alfandegários devidos pelos agentes económicos da Praça mercantil, com zelo e competência, em defesa dos Cofres Públicos. De outro, um Absolutista e Conservador, endinheirado, buscando defender os seus interesses a todo o transe, não querendo se submeter aos ditames da Fazenda Pública, sobretudo quando vê ou pressente alguma ameaça séria ao seu estatuto de maioral, de quem pode mais, porque tem mais, esgrimindo o estatuto social e a proeminência que a riqueza lhe confere, tentando atingir o seu adversário político de ocasião, não importando com os meios para atingir os seus fins, inclusivamente usando a arma da intriga com uma maestria extraordinária. E neste período, essas premissas fazem pender, e de que maneira, o fiel da balança para um dos lados, até porque, na prática, a intriga acaba sempre funcionando, quando quem a utiliza, dispõe de padrinhos bem posicionados junto da Corte, pleiteando os argumentos dos seus afiliados políticos. Os ataques de parte a parte sucedem-se, mas a corda arrebentando para o lado mais forte, que usando do seu poder, enquanto Prefeito, acaba por levar Marcelino Rezende Costa à prisão, durante vários meses, lutando, no entanto, da cadeia para provar a sua inocência e a força da sua razão, o que só obtém nove depois, sem no entanto, obter ganho de causa, pelo menos considerando propostos, que era derrubar o Prefeito do seu poleiro, o que acaba acontecendo, mas por outras razões, que não aquelas decorrentes das acusações que tinham sido endossadas ao seu opositor, e que, no entanto, eram muito graves.

3-De que forma este conflito ajuda a compreender a história de Cabo Verde no século XIX?
R-Ajuda, sobretudo, compreender um período de tempo específico, que é a 1.ª metade do século XIX, na medida em que os protagonistas destes conflitos corporizam uma época, num determinado espaço geográfico, que é Cabo Verde, onde os acontecimentos se sucedem, num contexto próprio, e dentro de uma realidade, diria, pedindo de empréstimo o conceito a Vitorino Magalhães Godinho, do complexo histórico e geográfico cabo-verdiano, marcado pelo fenómeno ilhéu, no quadro Atlântico, num ambiente pobre, sem recursos naturais visíveis e susceptíveis de permitir uma vida minimamente decente à grande maioria da sua gente, num quadro de secas cíclicas e de consequente penúria alimentar, provocando fomes e a lógica mortandade periódica no seio da sua população e, finalmente, num ambiente escravocrata, com tudo o que essa realidade transporta ou implica para toda a sociedade. Esse é o pano de fundo, a cobertura geral que baliza os acontecimentos, agravados, ainda mais, por uma profunda crise financeira, que nos permite descobrir uma sociedade praticamente bloqueada, logo sem saída nenhuma.
Tudo passa ante os nossos olhos, através da documentação coligida e editada neste trabalho, que agora ganha asas para outros voos e destinos que os leitores quiserem seguir. Um desenrolar de vidas reais, com personagens arrebatadoras, numa voragem de acontecimentos. Uma descoberta!
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Daniel Pereira
Um Mar de Conflitos – Marcelino Rezende Costa Vs. Manoel Antonio Martins
Rosa de Porcelana  25€
[Foto: Alexandre Conceição]

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