Henrique Manuel Bento Fialho: “Os livros. Muitos e bons”

1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-O principal legado são os livros, obviamente. Poderá um escritor legar-nos outra coisa? Enquanto escritor, é isso que ele nos deixa e é a isso que devemos ater-nos. O resto interessa-me pouco, apesar de militâncias comuns e raízes humildes partilhadas. As coisas da biografia, confesso-lhe, interessam-me enquanto romance possível sobre a vida do homem, que tem sempre segredos, contradições, incongruências. Todas as vidas são assim, umas mais do que outras. Mas se a pergunta é sobre o legado do escritor, não vejo que outro possa ser senão os livros. Muitos e bons. Os prémios não me comovem, os livros sim.

2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R-Sem dúvida nenhuma O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

3-Razões dessa escolha?
R-Há razões pessoais, mas transmissíveis, para que assim seja. O lançamento do livro coincidiu praticamente com a minha entrada na Universidade Católica, para estudar Filosofia. Li-o nessa altura, no ano de 1992. Era obra polémica, como são todas as boas obras, e muito maldita no contexto académico que me esforcei para frequentar. Eu, à época, já era ateu convicto, divertia-me imenso a ver a padralhada falar de Saramago como se estivesse a mastigar bagas amargas. Depois deu-se o caso Sousa Lara, mais um triste episódio de uma Assembleia da República há muito tomada de assalto por saloios, oportunistas, arrivistas e cretinos. Enfim, está lá quem metade do povo escolhe. A metade que vota. E se votam nesses é porque se revêm neles, o que não admira tendo em conta a hipocrisia que vamos observando diariamente. Quanto ao livro, que posso eu dizer que não tenha sido dito já? Tenho-o muito sublinhado, mas no frontispício deixei uma indicação específica para a página 381. É aquela em que Deus começa a elencar os crimes cometidos em nome do Senhor. Um inventário impressionante. Faltam os da pedofilia, como é compreensível. À época ainda não eram assunto que preocupasse as boas consciências. «Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.» Sabe o que é mais catastrófico? É ter-nos feito à sua imagem e semelhança. Não podemos esperar grande coisa de tal escultor, está visto.
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Henrique Manuel Bento Fialho, Escritor