Javier Marías: Nunca sabemos verdadeiramente nada, mesmo que…

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Abre-se um livro sem nenhuma informação na capa ou contracapa, um livro anónimo mas escrito cheio de letras e parágrafos. Ao fim do primeiro pequeno texto e mesmo antes, só de vigiar os adjectivos (que dizem ser de mau tom a não ser neste caso, desconcertantes e acertados porque muito pensados até parecerem nunca o terem sido), sabemos estar perante um livro de Javier Marías. Não vou aqui referir o apodrecido prémio Nobel, mas apenas repor a magnífica contribuição para tudo aquilo que pode significar construir uma obra que dignifique a espécie humana. É desse tipo de escritor que falo.
Nunca sabemos ao certo o passado, o nosso e muito menos o dos outros ou de um país ou uma raça agora em desuso. Nunca sabemos verdadeiramente nada, mesmo que o tenhamos vivido e lembrado bastas vezes ao adormecer ou ao acordar e durante o dia nas nossas tarefas futuramente esquecidas. Somos testemunhas de testemunhos e testemunhos de testemunhas e não atestamos nada. Podemos até ser espiões que nunca de capa e espada, mas antes de olhar os outros e julgar saber o que nunca se sabe porque a dissimulação é a sede da nossa existência. Mas achamos que sim, que o somos. Talvez para nos governarmos neste continuo e finito fadário dos dias da nossa vida. “Que perigoso é dizer.” Que perigoso é pensar, até ler e perseverar. É como encontrar ouro no meio de um rio, um garimpo ocasional mas decisivo porque intencional: sabemos que procuramos algo difícil e é por isso (pela trabalhosa actividade de pensar e peneirar) que o ganho é comemorado e rico e indispensável.
Ir além do pressuposto, ver o que outros seriam incapazes, por vezes adivinhar, deixar correr as palavras até formarem uma pessoa inteira. Quem o não fez?
A guerra e o tempo de paz, ambos impossíveis de imaginar quando se vive o outro. A chuva e o sol.
E como não continuar a ler um livro que assim começa: “Uma pessoa nunca devia contar nada, nem fornecer dados nem contribuir com histórias nem fazer com que os outros recordem seres que nunca existiram nem pisaram a terra ou cruzaram o mundo, o que passar, passaram, mas estavam já meio a salvo no vesgo e inseguro esquecimento.”
E é sobre o que se conta incessantemente, o que se proíbe de contar ou já não se pode (se morto) que nos acompanha pelo livro, numa falácia de si próprio. O que se vê do outro mesmo sem que ele saiba “o teu rosto amanhã”, o que se deve evitar a todo o custo “não perguntes o que já sabes”, dadas certas circunstâncias o que faríamos nós? Seríamos vítimas ou verdugos ou os dois? “O acaso pouco distingue” e isso permite que nunca saibamos nada, nem de nós.
E como “ninguém é o último num sítio”, espero não o ser nestas linhas e avanço já para o segundo livro da trilogia “O Teu Rosto Amanhã – Dança e Sonho”, embora eu prefira “dansa”.
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Javier Marías
O Teu Rosto Amanhã – Febre e Lança
Alfaguara  24,90€

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