João Albano Fernandes: “Escrever sobre o lixo, sobre esta realidade avassaladora que é o crescimento exponencial do lixo”

P-O que significou para si receber o Prémio do Lions de Portugal?
R-O Prémio Nacional de Literatura Lions tem vindo a afirmar-se como um prémio literário de destaque em Portugal, dando voz a autores nacionais de grande qualidade. Ainda recentemente vimos os últimos dois vencedores, Catarina Costa e Ricardo Lemos, serem nomeados como finalistas de outro importante prémio, o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz. E isto é muito significativo de como o Prémio Lions tem distinguido excelentes autores e, ao mesmo tempo, contribui para catapultar as suas obras. Por isso, vencer este prémio é, acima de tudo, uma enorme honra. E é também uma grande alegria e satisfação por ver “O Lixo dos Outros” publicado e acessível ao público.

P-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «O Lixo dos Outros»?
R-Falar na “minha obra” parece-me pouco adequado e penso que seria até pretensioso, visto que não passo de um jovem autor com 3 livros publicados. Pondo «O Lixo dos Outros» em perspectiva com os meus restantes livros, posso talvez dizer que é um livro mais depurado, tanto ao nível da linguagem como da própria narrativa. Foi um livro com um longo processo de revisão, onde tentei eliminar todas as impurezas, deixando apenas o objecto limpo, mais legível, mais cru. Talvez isso seja o que mais diferencia «O Lixo dos Outros» dos meus livros anteriores «Desafortunados» e «Uma Última Solidão». E, se quisermos efectivamente falar numa obra ou, talvez mais acertadamente, num percurso literário, talvez seja esse o grande salto deste livro em relação aos meus textos anteriores, a procura de uma escrita mais clara e certeira, a busca da simplicidade que, como sabemos, não implica necessariamente facilidade. Quase sempre é o contrário. Como dizia o Oscar Wilde, que adorava a simplicidade porque ela era o refúgio dos espíritos complexos.

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“O homem do lixo é um homem sem nome e sem rosto,
sem vida além da recolha do lixo. Passamos por ele
e é como se não o víssemos porque ele vai com
o lixo nas mãos. O lixo dos outros, daí o título.
E as pessoas não gostam de olhar para o lixo,
nem sequer o próprio, é uma substância
que repugna e afasta.”

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P-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Eu queria escrever sobre o lixo, sobre esta realidade avassaladora que é o crescimento exponencial do lixo. Antes de começar a escrever, fiz alguma investigação sobre o tema, li vários artigos, reportagens, entrevistas, vi alguns documentários, filmes. O que me impressionou mais foram os números do lixo, e acabei mesmo por colocar alguns desses dados no livro. Assustou-me sobretudo perceber que cada português produz hoje uma média de 65m3 de lixo por ano, o suficiente para encher o volume da própria casa de lixo. O suficiente para se afogar no seu próprio lixo. Vi algumas reportagens sobre cantoneiros e percebi imediatamente que era sobre um cantoneiro que iria escrever. E depois fui começando a observar com mais atenção na rua os cantoneiros com quem me cruzava, fui à procura dos rostos deles, da forma como andavam, como carregavam os contentores, como subiam para cima do camião, as coisas que diziam. Essa observação, que configura uma parte muito importante para a minha escrita, foi essencial para encontrar o meu cantoneiro, o Florêncio.

P-Florêncio, o protagonista deste romance, é alguém que vive nas margens da cidade embora com uma profissão essencial de recolher o lixo: foi sua intenção dar voz a pessoas em quem ninguém pensa?
R-O homem do lixo é um homem sem nome e sem rosto, sem vida além da recolha do lixo. Passamos por ele e é como se não o víssemos porque ele vai com o lixo nas mãos. O lixo dos outros, daí o título. E as pessoas não gostam de olhar para o lixo, nem sequer o próprio, é uma substância que repugna e afasta. Lembra-nos talvez a decadência e o fim. Eu queria dar nome, rosto e vida a este homem. Depois fui atrás disso. Sabia que este era um homem bom mas, como todos os homens bons, tinha os seus fantasmas. E a escrita explora isso, as diversas gamas de cinzentos da sua personagem, dando menos importância ao branco e preto, que são sempre as zonas menos interessantes para mim. Por isso a pergunta é acertada: sim, quis escrever sobre uma figura invisível, sobre alguém que, normalmente, não perdemos muito tempo a pensar, mas que tem um trabalho vital para que a sociedade funcione como a conhecemos. E, tal como todos nós, também tem uma vida, problemas, alegrias, conquistas e fracassos, etc.

P-Começou a sua carreira escrevendo e publicando contos. Depois disso, dois romances: são experiências criativas muito diferentes?
R-Eu costumo dizer que os contos são uma corrida de 1.000 metros e os romances são maratonas. Os contos são escritos quase de um fôlego. Quando pressinto uma história, um caminho, uma personagem, respiro fundo e vou atrás disso, deixando que a escrita flua como uma torrente. Os romances exigem uma disciplina muito diferente. Exigem tempo, maturação, uma respiração calma. Vão acontecendo ao mesmo tempo que a vida. Os contos são uma suspensão da vida. O escritor deixa por momentos de viver, senta-se e só fica descansado quando termina. Com os romances temos de aprender a conviver com as duas realidades – a nossa vida e a vida do livro -, mesmo que sejam diametralmente opostas.

P-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-No seguimento da pergunta anterior, neste momento estou só a viver. Não estou a escrever nada. Há períodos assim. A vida sobrepõe-se e não dá tempo nem lugar para a escrita. Eu sou um escritor diferente da maioria. Não escrevo todos os dias nem preciso da escrita para purgar o que quer que seja de uma forma regular. Claro que isto não é bom. A escrita é como um músculo que necessita de exercício constante para não definhar. Tenho consciência disso. Mas acredito que é uma fase e hei-de encontrar em breve o espaço para voltar a escrever. A única coisa que tenho feito, embora a espaços e sem grande regularidade, é a revisão de um romance que já concluí há algum tempo e sobre o qual estou a limar as últimas arestas. É um processo que me dá algum gozo e estou a aproveitar esses momentos. Espero que possa sair o livro entretanto.
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João Albano Fernandes
O Lixo dos Outros
Guerra e Paz  15€

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