João Carlos Melo: “Este livro é uma luz de esperança para todas as pessoas que sofrem em silêncio”
João Carlos Melo continua o seu processo de tornar mais simples e acessíveis temas complexos na área da saúde mental. Este último livro (escrito em colaboração com uma das suas pacientes) é um relato vivo, intenso e muito real de um caso muito complicado e raro. O caso de uma mulher que sofria de três condições que já são muito difíceis se surgem isoladamente e se tornam um verdadeiro desafio para a vida se coincidem na mesma pessoa: síndrome de Munchausen, perturbação Borderline e mentira patológica.
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P-“Renascer das Cinzas” é um livro que resulta de uma parceria e de uma partilha entre o psicoterapeuta e uma sua paciente com uma “doença maldita”: a síndrome de Munchausen. Como decidiram por mãos à obra e escrever este livro?
R- Ao fim de quase dois anos de psicoterapia intensiva começámos a perceber que o que estava a acontecer (um processo quase inédito de recuperação de doenças muito graves) devia ser divulgado publicamente. E pensámos que, caso este testemunho se tornasse conhecido, iria dar esperança a muitas pessoas e fazê-las pensar que vale a pena pedir ajuda e aceitar ajuda profissional.
Depois, à medida que o tempo ia passando e as melhorias se revelavam progressivamente mais consistentes, continuámos a investir no projeto e passámos a atribuir ao livro um significado diferente, mas complementar: uma motivação e um incentivo para nos dar mais esperança e para continuarmos a investir no tratamento e na recuperação.
P-Para percebermos melhor a situação: o que é a síndrome de Munchausen e como isso afectou a vida da Maria?
R-A síndrome de Munchausen, designação por que é mais conhecida a Perturbação Factícia, consiste em a pessoa vitimada por ela assumir o papel de doente com vista a ser cuidada pelos médicos. Nesse sentido, a pessoa queixa-se de sintomas que não tem, provoca sintomas e lesões em si própria, falsifica resultados de análises e exames médicos, recorre a urgências hospitalares e consultas e faz-se internar à custa das mentiras com que engana os médicos. Embora estas pessoas mintam e enganem os outros, fazem-no como a única forma que sabem de pedir ajuda; e sofrem desalmadamente, ao ponto de, em muitos casos (alguns estudos referem 70% ), morrerem por suicídio. Ironicamente, estas pessoas, na sua maioria, não aceitam ajuda e quando percebem que podem ser “apanhadas” nas suas mentiras, fogem, desaparecem e vão recomeçar o processo noutros hospitais e depois noutras cidades (e em alguns casos noutros países). No caso da Maria, estes comportamentos determinaram uma perda de credibilidade, experiências dolorosas por ser maltratada e uma solidão crescente. Ficou conhecida em muitos hospitais, pelas piores razões.
P-Para complicar o processo e facto muito raro, a Maria tinha duas outras doenças: a Perturbação Borderline e a Mentira Patológica. Como foi possível encarar estas múltiplas dimensões para encontrar uma saída e uma solução?
R- No caso da Maria, vítima da desventura de ter sido afetada por estas três doenças, elas articularam-se como se segue: o problema de base, digamos assim, era o vazio, a desregulação das emoções, uma angústia de abandono insuportável e um sofrimento atroz, próprias da Perturbação Borderline. Em alguns casos, a única forma de apaziguar este sofrimento é através de comportamentos autolesivos (mutilações e auto agressões), crises de raiva e consumo de substâncias para “anestesiarem” a dor. No caso da Maria, o que lhe aliviava aquele enorme sofrimento eram as mentiras e os comportamentos factícios, tal como referidos na descrição da Síndrome de Munchausen.
P-O estigma e a incompreensão ainda estão muito associados aos problemas de saúde mental. Podemos dizer que este livro e o testemunho da Maria podem ajudar a combater a doença ou, melhor ainda, a combater pela saúde?
R-Sem dúvida que sim. A Maria teve a enorme coragem de pedir e aceitar ajuda e de partilhar o seu caso. A exposição foi difícil, mas o seu propósito era maior e mais nobre: ser um exemplo e uma inspiração para outras pessoas afetadas por doenças similares pedirem ajuda, acreditarem e empenharem-se num tratamento que tem tido períodos muito difíceis, mas que tem produzido frutos da maior qualidade.
P-De que forma a leitura deste livro pode ajudar pacientes e psicoterapeutas?
R-Este livro é uma luz de esperança para todas as pessoas que sofrem em silêncio e que têm medo de pedir ajuda. Ele mostra que vale a pena acreditar, vale a pena confiar e vale a pena pedir ajuda. As pessoas que sofrem de Síndrome de Munchausen, em primeira instância, procuram os médicos, médicos de várias especialidades. Para estes médicos, acreditamos que a primeira atitude que podem ter é pensar nesta doença (só encontramos aquilo que procuramos). Depois, quando perceberem que o doente não tem as doenças que assume que tem, devem ter a atitude de “salvar a face” do paciente: não o confrontar com as mentiras e fazê-lo perceber que, apesar de saberem que estão a ser enganados, querem continuar a ajudá-lo. E, o mais importante de tudo, não abandonar o paciente. Este é o maior medo destes doentes e, por isso mesmo, deve ser claramente respeitado.
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João Carlos Melo/Maria C.
Renascer das Cinzas
Bertrand 17,70€
João Carlos Melo na “Novos Livros” | Entrevistas