Borges e o mal que inflama a memória
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Sete palestras feitas pelo bibliotecário cego de Buenos Aires em sete noites no ano de 1977.
A primeira tem como título A Divina Comédia e daqui parte-se para caminhos que parecem divergentes na aparência, mas que se cruzam em profundidade. Como que por acaso “salvo que não há acaso, salvo que isso a que chamamos acaso é a nossa ignorância do complexo maquinismo da causalidade”, chegamos ao encantamento que “é uma das qualidades essenciais que deve ter o escritor”, a Homero e Mallarmé concordando que “somos feitos para a arte, somos feitos para a memória, somos feitos para a poesia ou possivelmente somos feitos para o esquecimento”, ao momento único em que dois seres percebem, bastante subitamente e como que num sobressalto, que estão apaixonados “um momento como o resumo de uma vida” como Paolo e Francesca no canto V da Comédia, quando Dante e Virgílio penetram no segundo circulo do inferno, e é este o destino desta palestra, o amor sem reservas, incondicional e proibido, mas nunca com remorsos ou arrependimento, condenando assim o casal à eternidade infernal nunca os separando.
A segunda palestra traz o pesadelo. No mundo dos sonhos porque há lugar para sonhos maus? O que os define? É possível controlar a nossa mente? Etimologias, psicologia, literatura, o sono mau visto por várias lentes. O sonho é sempre memória e não completo, logo estamos a examinar algo que não foi bem assim, como quase sempre. Máscaras, espelhos, livros eternos, desertos entre areia dourada “está no centro do deserto – no deserto está-se sempre no centro”. “E se os pesadelos fossem gretas do Inferno?”
É melhor seguir em frente, para as Mil e Uma Noites, uma paixão antiga no Ocidente, não tão popular nos lugares que lhes deram voz, o Oriente, a Índia, a Pérsia e o Egipto (gosto de escrever com “p”). “ Um acontecimento capital da história das nações ocidentais é o descobrimento do Oriente… uma coisa vasta, imóvel, magnífica, incompreensível…” Ainda hoje nos atrai e repele, como se viéssemos de lá e tivéssemos medo de voltar. Somos filhos da aventura e do medo. Depois existe o fascínio da madrugada, do percurso celeste de Hélio, também celebrado nas antigas civilizações da América do Sul, o local do ocaso por excelência “O Oriente é o lugar onde nasce o sol. Há uma bela palavra alemã que vou recordar: Morgenland – para o Oriente -, ‘terra da manhã l’. Para o Ocidente, Abenland, ‘terra da tarde’.” E é destes lugares que vem a magia, o encantamento, a capacidade de mudar as coisas pela força das palavras, o poder de se conseguir surpreender os outros todas as noites, todos os dias “O que é a magia? A magia é uma causalidade distinta. É supor que, além das relações causais que conhecemos, há outra relação causal.”
Para Borges, Ulisses é Sinbad e vice-versa, o que nos leva a pensar na origem de todas as histórias que, incessantemente, teimamos contar aos que nos sucedem, imaginando uma originalidade sempre baseada nesses primeiros plágios universais.
Depois o Budismo, num texto intelectual e intenso, mas que não me traz nada que já não saiba quanto às misteriosas razões de acreditar em algo superior que desarma e não une, por muito integradora que qualquer filosofia teísta se julgue. Mesmo que a sua arte ou fé ou princípio comece e se manifeste na incansável dúvida.
Ainda espaço para a Poesia e para a beleza “Considero que a beleza é uma sensação física, uma coisa que sentimos com todo o corpo. Não é o resultado de um juízo, não lhe chegamos por meio de regras; ou sentimos a beleza ou não as sentimos.” É assim com tudo o resto, até com a poesia. Mesmo quando esta não se manifesta no espectro do belo.
Ainda outro texto sobre a Cabala onde nada pode ser causal porque terá sido escrita por um ser supremo. Esta será uma história de homens novamente, terá os seus altos e baixos, nada existirá aqui que não tenha causa conhecida. E de como Deus permite a existência do mal, tantas teorias assentes no pressuposto de que esse ser e essa entidade (Deus e o mal) existem, quando tudo sempre esteve presente em milhares de milhões de conexões dendríticas, metidas e compactadas no misterioso cérebro humano.
Borges deixa para o fim o mal que o vitimou, a ele e a outros dois bibliotecários de Buenos Aires, a cegueira. O mal que inflama a memória , principalmente quando estamos perante um génio. O que é o caso.
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Jorge Luís Borges
Sete Noites
Quetzal