João Rasteiro: “Fixar o que em duas décadas fui capaz de escrever”

1 – O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Ofício»?
R-Tenho algum desconforto, até pudor, em falar “a minha obra”, pois parece que é uma vasta e marcante obra da poesia portuguesa contemporânea. Embora já tenha vários livros publicados, não me parece, de forma alguma, poder falar em “obra”, no sentido com que se fala na obra de um Herberto, ou mesmo de uma Ana Luísa Amaral, para falar de alguém ainda com muitos livros para “oferecer”. No entanto, respondendo concretamente à pergunta, e citando algumas das palavras que o coordenador da coleção ‘elogio da sombra´, o escritor e poeta Valter Hugo Mãe, o conseguir reunir hoje estes livros e/ou poemas dispersos por volumes de um sem número de chancelas, constantemente esgotados e inacessíveis num único corpo poético, que julgo ser aquele que é o mais demonstrativo das minhas qualidades e fragilidades poéticas, é um momento único para mim, aquele momento fulcral em que eu próprio olho para mim a partir dos meus próprios poemas. A poesia não é diferenciada do homem que a concebe nas suas virtudes e nos seus defeitos. É uma permanente reflexão sobre a linguagem do mundo, na utopia de nos irmos conhecendo a nós mesmo. Isso, independentemente da eventual evolução da escrita em si, do aperfeiçoamento sintático e gramatical do texto, que utopicamente julga vir a retratar o real, ou, mais concretamente, a verdade. OFÍCIO é, pois, e já me alonguei na resposta quase sem responder, o convicto e decisivo agrupar “às margens de um mar ensimesmado. / O reflexo do nervo que se ofereceu”. Ele é a circunstância que me faz fixar, o que em duas décadas fui capaz de escrever e que até agora não repudiei, na convicção de que este corpo se torne o essencial, “o corpo da água no simples gesto de expurgar.”

2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-A ideia deste livro nasceu, sobretudo, do irrecusável convite do Valter Hugo Mãe. É verdade que todos, ou quase todos os poetas, pensam um dia em fazer uma antologia, ou reunião, da sua poesia. Daí que, e de certa forma, como já referi, devido à publicação em múltiplas e quase inacessíveis editoras ao longo dos anos, este convite foi também, decorridas duas décadas sobre o despertar definitivo para a poesia, com a frequência militante da ‘Oficina de Poesia’ dirigida na FLUC/UC, pela Prof.ª Graça Capinha, e da publicação do meu primeiro livro, ‘A Respiração das Vértebras’, a necessidade de aferir a pertinência, ou loucura, de persistir cada vez mais, numa relação feroz e umbilical com o texto poético (seja escrevendo, seja numa quase diária leitura impiedosa). Até porque, “qual a alternativa à aceitação da sordícia, / quando ela nos permite erguer os dias e as noites / e aqui saborear estas coisas, e todas estas coisas / serem pasto, serem a heresia, a sílaba do espanto?

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Eu posso estar sem escrever vários dias, sem que tal me provoque qualquer angústia ou sofrimento. E depois, se começo a escrever, normalmente escrevo de forma compulsiva durante vários dias. Neste preciso momento, estou a reorganizar um livro intitulado “A noite que cercou o meu ofício” (livro anterior à elaboração da antologia OFÍCIO, e que por isso integra alguns dos seus poemas), obra elaborada em íntima intertextualidade e/ou diálogo com Carlos Oliveira e, de forma muito particular, com o seu poema “Soneto Fiel”. Em simultâneo, estou em limpezas finais de um livro, intitulado “Alexandria”, que foi escrito nestes últimos meses, quando pensava que ia estar um pouco em remanso com a poesia. Escrevendo, mesmo sabendo que “O esquecimento é uma dádiva / que todos cerca e se durarmos para lá / da refração deste poema / imperioso será então que desabem os céus.” E por fim, ainda continuo de volta de um livro de contos, intitulado “Nunca lerei Nabokov”, pois ando às voltas de um conto que, obrigatoriamente, quero incluir, mas o qual me tem resistido estoicamente, pois não lhe consigo encontrar uma conclusão que me agrade, para além de ainda não ter decidido se incluo mais um conto pois, algo que perpassa  nos meus textos, é a simbologia matemática, a simbologia dos números. Inclusive, o número de poemas é sempre em função de uma simbologia numérica. E, como sempre, e sobretudo lendo, lendo muito, sobretudo poesia, sempre num permanente processo de catch, da palavra, da ideia, do sentido. Pois, “assim como do verso escrava é a mão, / assim da morte escravo é o amor. /há um sexo dentro das palavras, o afinco da crença, ‘quase uma solidão’”.
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João Rasteiro
Ofício [Poesia 2000-2020]
Porto Editora  23€

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