Julian Barnes sobre Chostakovich

CRÓNICA
|agostinho sousa

Trata-se de uma sucinta biografia romanceada de Dmitri Chostakovich, onde persiste a presença de um ambiente ambivalente de medo e proteção, característicos do terror de um regime político que o acossou, como a muitos outros, ao longo da sua vida como compositor e intelectual russo. De figura destacada desse regime, pela sua genialidade de compositor musical, ao ostracismo e proibição das suas peças serem tocadas em público, bastou a saída de Staline antes do último ato da ópera Lady Mcbeth do Distrito de Mtsensk, da sua autoria. Esse ato simbólico, seguido de um artigo no Pravda intitulado “Chinfrim em vez de música”, foi motivo, mais do que suficiente, para o compositor ser banido e evitado pelos seus congéneres, passando a figurar na lista negra do regime. O artigo, sem um autor assumido, leva Barnes a colocar a hipótese de que tenha sido da responsabilidade de Staline, tendo em conta alguns erros gramaticais que nenhum revisor teria a coragem de propor correção. O processo criativo de Chostakovich reflete essa vivência coletiva soviética, onde imperam o taticismo, a traição, a conspiração, ou o simples infortúnio de ter um amigo ou um familiar considerado traidor à causa patriótica, mais o medo permanentes onde «dizer a verdade se tornou impossível – porque levava à morte imediata» ou, na melhor das hipóteses, à perda de privilégios ou ao Gulag. Talvez a necessidade de um permanente equilíbrio entre acautelar a vida e a ação, na sua postura criativa, o tenha levado a assinar «uma carta pública nojenta contra Soljenítin, embora admirasse o romancista e o relesse constantemente. Depois, uns anos mais tarde, outra carta nojenta a denunciar Sakharov.» Mas quais seriam as suas alternativas naquele tempo de estranhos ruídos? A fragilidade com que sobreviveu sente-se na descrição de uma conversa telefónica com Staline: – Este queria que Chostakovich fosse a Nova Iorque ao Congresso Cultural e Científico para a Paz Mundial em representação da União Soviética. O compositor esquiva-se, perante a surpresa da chamada, fazendo algumas tentativas para justificar a sua recusa em participar, desde problemas de saúde, enjoo na viagem, falta de roupa à altura do acontecimento; até que, por insistência de ditador, teve coragem e apresentou a verdadeira razão mas de uma forma camuflada: “«O facto, bem vê, é que estou numa posição muito difícil. Lá na América, a minha música é tocada muitas vezes ao passo que aqui não é tocada. Vão questionar-me sobre isso. Como vou reagir em tal situação?»”. Staline reage com uma estranheza dissimulada a essa proibição, do conhecimento público e a seu mando, e afirma que isso era um erro, que iria encontrar os responsáveis por essa injustiça e que a mesma seria prontamente corrigida. Dias mais tarde será publicada a retificação, permitindo a audição pública das suas peças, com a assinatura do próprio ditador. Salvou-o ao longo da vida a subtil ironia que se pode escutar em muitas das suas peças musicais, apesar de, mesmo nos últimos anos de vida, ter mantido o medo omnipresente de outros tempos, até porque, como menciona o autor, na URSS só havia «dois géneros de compositores: os que estavam vivos e assustados e os que estavam mortos». Mas uma figura tão grande e numa época tão obscura é difícil de retratar. Barnes justifica-se nesse sentido quando afirma: «É verdade que, na generalidade, a verdade era uma coisa difícil de encontrar, e ainda menos de afirmar, na Rússia de Estaline. Até os nomes se alteram, de modo incerto: assim o inquiridor de Chostakovich na Casa Grande [onde foi algumas vezes interrogado] é apresentado de várias maneiras, como Zanchevski, Zabrevski e Zakovski. Tudo isso é altamente frustrante para qualquer biógrafo, mas muito agradável para qualquer romancista.»Estamos na presença de um romance escrito com mestria, graça e erudição, algo sintético mas que se lê com muito prazer e de uma assentada. Recomendável.

Espinho, 10/06/21

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Julian Barnes
O Ruído do Tempo
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