Raphael Yudin: “Tudo começou num livro de poemas”


[Fotografia: Luís Colaço]
1-0 que representa, no contexto da sua obra, o livro “Os Cães de Cérbero”?
R- Talvez mais do que contexto da minha obra, sinto que tenham pesado os contextos da minha vida pessoal e da nossa vida colectiva. Estávamos ainda em histeria mediática após um vírus pandémico, novo ciclo de crises profundas e guerra à porta. E o meu pai tinha morrido há pouco tempo. Poucos anos é pouco tempo. Faz este pouco tempo todo seis anos. Várias mudanças no meu mundo interno e no mundo lá fora. Não consigo dissociar factos pessoais e as dores do mundo.
A palavra escrita existe na minha vida desde sempre. E ela acompanha-me na experiência do mundo. Nas minhas reflexões diárias. E, depois, a minha vida laboral tinha sido dedicada ao jornalismo, ao cinema e algum tempo à investigação nas ciências sociais. O cinema e uma série de televisão no passado tinham-me permitido dar livre voz à palavra escrita num corpo vivo de imagens. A poesia, os contos, as histórias para romances foram nascendo em paraleloem cadernos e mais tarde ficheiros de computador. A partir do cinema, assim como da música porque não havia como separá-los, comecei a sentir uma forte influência na construção de paisagens, cenários ou certas formas que usava nos textos poéticos e ficcionais que ia escrevendo. Depois, também não consigo dissociar os diferentes aspectos da minha alma e personalidade. Nem a vida que vivemos com os seus amores e desamores, ilusões e desilusões, paixões, frustrações e a observação do espírito que subjaz a todo esse sal e pimenta. Ou àquilo que nós, humanos, adoramos chamar assim. Ao longo desta creio ainda curta vida – mas isto nunca se sabe e rirmo-nos desta condição não faz mal a ninguém – também fui escrevendo sobre as minhas caminhadas e travessias que têm incluido tanto uma duradoura reflexão filosófica que se encontra omnipresente no meu percurso como por aquilo que tradicionalmente se designa via ou vias espirituais. E não havia como impedir que as palavras reflectissem também essa jornada. Mesmo porque não havia nenhuma razão para o fazer.
Então, se for para contextualizar com a obra intelectual mas numa dimensão mais universal, teria de integrar com a figura do realizador e os filmes “Lucy” e um “Um Documentário Bestial” ou a do investigador no livro “Parapsicologia, Entre a Crença e a Ciência”, co- autoria com o meu colega e amigo: o psicólogo social Sérgio Razente. E posso assumir que sim, exista uma linha de continuidade em relação ao trabalho do escritor e poeta.
Só que em dimensões onde se trabalha com formas diferentes e nesta a palavra escrita, na sua vertente mais poderosa – a da imaginação nua, crua, pura e dura -, possui prioridade ontológica sobre as demais dimensões, também renascemos em mil aspectos. Daí o alter-ego naturalmente necessário face ao Nuno Costa de outros papéis e a necessidade de existir o Raphael Yudin. E no caso de “Os Cães de Cérbero”, incluiu mesmo um segundo alter-ego, Theo Zabat, que acaba por ser, ambivalentemente, personagem do romance “O Pistolero”, terceira parte desta trilogia que inclui também um álbum de canções chamado “Blitkrieg Bot”.
Se o que relatei atrás ajudar, escrevi o que precisei de escrever. O que senti necessidade de escrever. E é só isto, não há um porquê na verdade. Nasceu assim a partir desta necessidade e compulsão. Todos os poemas e aforismos precisaram de ser aqueles. Todas as canções também. E toda a dança de ficções entre personagens e alter-egos no romance “O Pistolero” ou “Os Diálogos de Theo Zabat” também. Oficialmente, terei de afirmar algo como: no contexto da obra de Raphael Yudin, esta é a sua estreia em poesia e ficção no mundo editorial.

2-Qual a ideia que esteva na origem deste livro?
R- Na génese, tudo começou num livro de poemas. Comecei a organizar naturalmente os poemas em três capítulos: “Terra”, “Inferno” e “Céu”. Depois nasceu um quarto capítulo, intitulado “O Casamento entre o Céu e a Terra”. Naturalmente – como o nome indica – , em «Os Cães de Cérbero» esse lado infernal ou mais denso da alma humana carrega uma atenção especial. No entanto, apesar desses domínios infernais, há sempre um foco luminoso a apontar para cima e em frente. Os poemas caminham muito por estes vales e montanhas. O livro de poesia nasceu simplesmente assim.
Só que um acontecimento aleatório acrescentou nova ou segunda camada ao livro. Numa viagem a Londres conheci uma personagem real extraordinária. Matemático, filósofo, cientista computacional. Enfim, o impacto deste encontro influenciou um diálogo interno com personagens, cenários e alter-egos e nasceu a ideia de dar vida a uma personagem ficcional que fosse em simultâneo o protagonista do romance e o autor dos poemas: Theo Zabat. Uma personagem inspirada naquele contacto estabelecido em Londres. Este segundo lado de “Os Cães Cérbero”, como se fosse o lado b num disco de vinil, chamado “O Pistolero” e sub-intitulado “Os Diálogos de Theo Zabat”, é uma viagem de dois dias e duas noites pelas ruas de Londres. É uma viagem com aspectos diurnos e nocturnos onde a vida e a morte, a guerra e paz se tornam temas omnipresentes.
Depois conceptualmente, fazia sentido organizar as canções num só capítulo e assim se sequenciaram os textos num álbum designado “Blitzkrieg Bot”. Com alguma atenção nas questões electrónicas, obviamente, porque os debates filosóficos universais e metafísicos do século associadas à grande indústriatecnológica são um tema em relação ao qual é impossível passar ao lado. Além do assunto ter sido tratado na forma poética em “Os Cães de Cérbero” e ficcional no romance “O Pistolero”, este álbum de canções e o seu título e capa também foram idealizados nesse sentido.

3-Pensando no futuro, o que está a escrever neste momento?
R- Em relação ao futuro, sairá neste próximo Novembro um novo livro de poesia, intitulado “As Flores do Bem» pela Editora Trebaruna. A catarse diante das dores do mundo, a beleza prístina da vida, o amor incondicional, a superação pela contemplação amorosa são as dimensões do Real físicas e etéreas por onde os poemas transitam. Este trabalho inclui também um Manifesto, no qual contei com a colaboração do meu colega Nicollas Croynder. Chama-se “Manifesto aos Povos do Mundo”, de Diógenes o Novo.
O que ando a escrever? Todos os dias sinto necessidade de escrever poemas, aforismos, fazer as minhas reflexões filosóficas, metafísicas, culturais e políticas. Há também momentos em que palavras, frases, textos, temas simplesmente descem sobre nós sem que façamos nada. A organização lógica e o aprumo das ideias vem à posteriori. E todos os dias são dias de desenvolvimento, maturação, final ou renascimento de contos, novelas, livros de poemas, romances a partir do computador. Ou dos cadernos de rua onde se vão vendo nascer os novos mundos. Vai-se colocando ordem na palavra, moldando o fogo em etapas, dando forma sob a electricidade dos pensamentos e as águas quentes do coração. Mesmo quando este atravessa Invernos rigorosos ou tormentas em mar revolto. Mais ainda nesses momentos escrevemos o que precisamos de escrever. Nos outros, os de serenidade profunda, escrevemos o que temos de escrever.
Nesse processo de catarse e transcendência, com imersão na pólis e nas dores do mundo – nem todos os autores e criadores o fazem ou sentem necessidade de o fazer – , finalizo dois livros: “Novelas do Purgatório” e “Genesis” também para a Editora Trebaruna. No primeiro, um livro de novelas e contos tive uma pulsão para escrever algumas histórias de contornos macabros, senti um impulso para dar expressão a personagens que se debatessem com os lado mais nocturnos e negros da alma. Mas há sempre uma escadaria inevitável para a redenção. E também trabalhei sobre uma história popular medieval portuguesa a partir de uma recolha etnológica feita pelo meu avô. Uma história centenária que narra um tête-a-tête bastante terreno entre Deus e o Diabo.
O segundo é um livro de poemas no qual decidi associar na dimensão física do livro outra linguagem visual. Neste caso, recorri a imagens iconográficas e, como foi uma ideia que agradou à minha editora, materializou-se naturalmente. Nos poemas, senti necessidade de os organizar em quatro núcleos: O mundo; Os sonhos; Os pesadelos: O corpo de luz. A meio, um capítulo intermédio – o terceiro – baptizado “Os sinais de código”, no qual são integrados elementos da outra linguagem gráfica que neste livro convido a dançar com os poemas. Estou a escrever também há cerca de ano e meio com Nicollas Croynder um romance em três volumes de ficção histórica e científica.
[Entrevista respondida por escrito.]
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Raphael Yudin
Os Cães de Cérbero
Editora Europa