Ricardo Gil Soeiro: “Como uma espécie de amável detective”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro Acariciar a Mais Longínqua das Estrelas?
R-A ideia de explorar aquilo que designo por poética háptica em Eugénio de Andrade surge de um trabalho ficcional, publicado em 2021, intitulado Tratado da Mão. Trata-se de uma obra pela qual nutro um carinho muito especial: um trabalho profundamente desgastante que me tomou uma década… Por essa altura, estava a ler muito intensamente Elias Canetti, Robert Walser, Kafka, mas também António Franco Alexandre e…Eugénio de Andrade. Fiquei fascinado com a pregnância simbólica que as mãos assumem para todos estes autores. De resto, a lista é extensíssima. Poderíamos aqui incluir Herberto Helder, Carlos de Oliveira, Manuel Gusmão, etc. Mas, estou em crer, na poesia de Eugénio essa presença é, por assim dizer, mais obsessiva, mais produtiva. A partir desse momento, a minha incumbência foi simplesmente seguir, como uma espécie de amável detective, os rastos dessa obsessão.
2-Onde e como surge o seu interesse por Eugénio de Andrade?
R-Surge muito cedo, na fase da adolescência. Inicialmente com a leitura de alguns poemas avulsos, depois com a leitura integral da sua poesia completa, na famosa edição da Fundação Eugénio de Andrade (creio), que tinha uma capa bege muito bonita. Uma edição muito cuidada que eu manuseava religiosamente. A leitura integral desse volume teve um impacto muito forte em mim e, durante esse período, posso mesmo dizer que a leitura daqueles versos constitui uma espécie de poderoso catalisador para a minha própria escrita, naquela altura com contornos muito pueris.
3-Nesta obra, propõe-se “averiguar de que forma é possível é vislumbrar, na escrita de Eugénio de Andrade, uma poética háptica”: o que concluiu?
R-Parti com uma ideia algo vaga de que, na verdade, essa poética háptica (relativo ao tacto) ocupava um lugar assinalável na poética eugeniana, particularmente nos seus textos em prosa. O que me surpreendeu, de facto, foi a intensidade dessa presença e a forma angular como vai esculpindo a fisionomia deste idioma poético. Em qualquer dos casos, se há alguma conclusão a extrair é a de que não estamos perante uma presença linear, facilmente apropriável pela crítica. Muito pelo contrário. Em diversas obras de Eugénio, assistimos a uma ambiguidade relativamente a essa poética háptica. Em Homenagens e Outros Epitáfios, por exemplo, é facilmente constatável uma espécie de mecanismo de produção de ambivalência. Aí se observa, à semelhança do que sucede noutras obras, o semblante bifronte de Janos, poética onde as mãos pontificam como símbolo ambíguo de comunhão e contenda, êxtase e agonia. Ainda assim, por vezes precárias, trémulas e oscilantes, as mãos assumem-se sempre, na poesia de Eugénio de Andrade, como instrumentos do “ofício de paciência”, porfiando no extenuante labor das palavras, erigindo sílaba a sílaba a intransigente arquitectura do poema.
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Ricardo Gil Soeiro
Acariciar a Mais Longínqua das Estrelas
Abysmo 10€