Rui Cardoso: “Quem quer a paz tem que se mostrar preparado para a guerra”
[Foto: António Pedro Ferreira]
P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Ucrânia-35 Pontos fundamentais para entender a invasão russa»?
R- A de, no mais curto espaço de tempo possível, escrever um livro que analisasse as origens do conflito, fossem as remotas e históricas (idade média, formação do império russo, etc.), fossem as mais imediatas (anexação da Crimeia, guerra civil no Donbass, etc.). Que procurasse documentar as diversas fases da guerra (tácticas, armamentos, etc) e finalmente, traçasse cenários possíveis para a evolução do conflito e suas consequências, das económicas às políticas, geoestratégicas, ambientais, etc.
P-A invasão foi mesmo inesperada ou tratou-se de um excesso de confiança do Ocidente apesar do sucedido na Crimeia em 2014?
R- A ideia transmitida pelo primeiro grupo de repórteres portugueses que estavam na Ucrânia nas semanas que antecederam a invasão (Cândida Pinto, Irina Shev, etc) é que os próprios ucranianos não acreditavam na hipótese de uma guerra em larga escala. A haver hostilidades, ficar-se-iam pelo leste, pela fronteira com as regiões separatistas pró russas ou seja pelo Donbass. Portanto, essa ilusão existia na própria Ucrânia.
P-Dos pontos que identifica e desenvolve no livro, quais lhe parece terem sido os determinantes para Putin dar este passo?
R- Convicção de que o Ocidente não reagiria, subestimação da capacidade de resistência ucraniana (em especial do grau de preparação das tropas e da sua adaptação a novos tipos de material ligeiro como os lança-foguetes anti carro e anti aéreos) e sobrestimação da capacidade russa de levar a cabo uma guerra relâmpago e chegar a Kiev em três dias. Putin achava que conseguiria travar com sucesso uma guerra colonial com a cobertura do estatuto russo de potência nuclear.
P-A invocação da História tem sido recorrente por Putin e contraditada pelo Ocidente: qual o papel que verdadeiramente podemos atribuir a esta dimensão no processo?
R- Absolutamente decisiva. Como o Big Brother de Orwell, Putin reescreve e instrumentaliza a História. Nega a existência milenar de uma nação e cultura ucranianas, cria uma narrativa única sobre a II Guerra Mundial em que apaga os crimes de Estaline, as cláusulas secretas do pacto germano-soviético de 1939 (partilha da Polónia, ocupação dos países bálticos e da Finlândia, etc.) e assimila o patriotismo ucraniano e a resistência ao invasor russo a uma ideologia neonazi.
P-Para Portugal, os principais efeitos deste conflito serão apenas económicos?
R- E geopolíticos, uma vez que determinam um outro papel da NATO, da defesa europeia, etc. Para além de esta guerra ter efeitos ambientais terríveis, quer directos (poluição, contaminação de solos e água, etc), quer indirectos (maior recurso a combustíveis fósseis, agravamento do efeito de estufa, etc.). E os efeitos económicos são também políticos: o bloqueio às exportações ucranianas de cereais pode conduzir a fome generalizada e instabilidade social em África, Médio Oriente, etc, que afectarão sempre Portugal.
P-A situação de grande instabilidade que a invasão e a guerra criaram pode levar a um aumento da importância geoestratégica de Portugal?
R- Desde logo do ex-primeiro ministro português que dirige a ONU, ou seja António Guterres. Depois, porque há alguma acção diplomática a fazer junto do mundo lusófono de forma a garantir um maior isolamento diplomático da Rússia, nomeadamente na ONU. E depois porque a própria construção europeia tem que dar novos passos e aí a posição dos pequenos países do Sul como Portugal é decisiva.
P-Podemos entender esta invasão como um sinal de que a Europa sem guerra acabou?
R- Acabe esta guerra como acabar, a desconfiança entre o Ocidente e a Rússia prevalecerá durante décadas. Agora, como muito bem dizia o presidente Macron, convém olhar para a I Guerra Mundial e para o Tratado de Versalhes e garantir que o acordo de paz que porá termo a esta guerra não gere humilhações e ressentimentos, nomeadamente do lado russo, que alimentem a guerra seguinte.
P-Do seu ponto de vista, que influência terá esta invasão no futuro da Europa e do mundo?
R- A menos que haja uma mudança dramática de regime na Rússia, o que tanto pode passar por uma nova liderança mais dialogante, como pela desagregação da Federação russa, Moscovo corre o risco de se virar para Oriente, ficando vassalo da China, diplomaticamente isolado e economicamente irrelevante. Quanto aos EUA descobrem que há mais coisas no mundo além do Indo-Pacífico e que a velha Europa ainda tem importância geoestratégica. E a Europa descobre que o velho aforismo romano sobre a dissuasão continua válido: quem quer a paz tem que se mostrar preparado para a guerra…
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Rui Cardoso
Ucrânia-35 Pontos fundamentais para entender a invasão russa
Oficina do Livro 16,50€
Rui Cardoso na Novos Livros | Entrevista