Vergílio Alberto Vieira: a obra e a alma humana


[Fotografia: Rui Sousa]

1-Qual a ideia que esteve na origem de Meu teatro de papel, a fotobiografia de Vergílio Alberto Vieira?

R-Várias ideias estiveram na origem do projeto de edição de uma fotobiografia de Vergílio Alberto Vieira, não por se tratar do meu pai, mas porque 50 anos de “andar em livro” são motivação, porventura argumento, para recolher as cinzas de Papéis de Fumar/ obra poética (2006), singularidade de um laboratório de experimentação literária em áreas alargadas aos campos da poesia, ficção, dramaturgia, ensaio e crítica, diarística e, em particular, à produção infantojuvenil, modalidades que só por si justificam o registo da jornada, que teve a literatura portuguesa como horizonte próximo dessa “viagem ao fim da noite” que é, afinal, a vida de um autor.

2-Vergílio Alberto Vieira é um autor com um percurso longo, vasta obra literária e intervenções criativas múltiplas: como conseguiu reunir (e resumir) essa imensa diversidade neste livro?
R-Não foi fácil, como fica demonstrado através da diversidade que a espacialização da obra exigia; do método encontrado para levantar do chão a Torre de Babel em que os arquivos (para não dizer: a desarrumação e emergência da salvaguarda documental) se encontravam, ao ponto de nem o próprio se entender com “a ordenação do caos” que requeria tratamento, sempre adiado, e menos negligência seletiva no arquivamento dos materiais. Chamando a mim a incumbência de meter mãos à obra e, desse modo, pôr cobro à degradação de um espólio que, resultante de décadas de trabalho, de con/vivência literária com gerações que o esquecimento acabará por deixar sob escombros da “maldição” (diriam os surrealistas) que é ser escritor em Portugal, a fotobiografia, agora dada à estampa, retoma o expediente de Penélope – desta vez na condição de filha – em fazer-e-desfazer a intrigante revelação do poscénico criativo, com sentido de compromisso e sistematização face às especificidades que o discurso literário exige.

3-No processo de pesquisa e recolha que esteve na base desta Fotobiografia quais os aspetos que mais a surpreenderam sobre o autor ou sobre a sua obra?
R-Entre as variáveis para/ com as quais o processo de pesquisa poderia ter concorrido, e porque foi necessário intervir – de forma drástica, por vezes – sobre uma orientação gráfica (e tipográfica), que marcasse a diferença geralmente seguida neste tipo de edição, com vista a respeitar a metodologia que melhor refletisse a personalidade da obra e particularidades biobibliográficas do autor, creio que terão sido: por um lado, a extensão e modalidades da obra; por outro, a idiossincrasia do fotobiografado, vertentes com implicações diretas no memorialismo intergeracional, comprovado pelo acervo epistolográfico disponível; pelo culto permanente de tendências que se prendem com o trabalho do leitor, do bibliófilo e das afinidades artísticas em áreas como a música, a pintura, o cinema, por demais  refletidas no estilo, temáticas, operatividade discursiva de todos os géneros literários que cultivou, sem excluir a  produção infantil (publicada e inédita: poesia, narrativa, teatro), em que já se contabilizam cerca de 70 títulos, explicada através da experiência  que traz à colação as qualidades pessoais e profissionais do docente e também do animador cultural que não deu tréguas ao desejo de contribuir para a formação de leitores em colóquios e oficinas de escrita realizados, ao longo de décadas, em bibliotecas da rede de leitura pública de quase todo o país.
Já quanto às surpresas (parte delas, eventualmente, ainda por desvelar) reconheço que foram de permanente crescendo, não só para mim como para o próprio fotobiografado, sempre que as falhas de memória – em parte decorrentes da deriva do autor ante as ocupações que a criação literária lhe exigia, o que, em boa verdade, levou a constante alteração de planos, quando não radicalmente, em parte por falta de atendimento da constatação pascaliana a que confere à “memória” a primazia de ser imprescindível auxiliar de “todas as operações da razão”.
É que, pensando melhor, e voltando aos Pensamentos de Pascal, razão (e falta dela) foi o que fez da fotobiografia “Meu teatro de papel” aquela espécie de “cura” para as ilusões/ desilusões da sentimentalidade que, ao longo de ½ século, tem levado o escritor a converter o seu trabalho intelectual na “substância” em que ele-próprio e, por inerência, a obra se fizeram uma, e a mesma, alma humana.
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Ana Sofia Vieira
Meu Teatro de Papel. Fotobiografia de Vergílio Alberto Vieira
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