Vergílio Alberto Vieira: “Com os anos, fui entendendo que todo o absoluto é, afinal, relativo”
Vergílio Alberto Vieira é um prolífico autor repartindo a sua obra por poesia, ficção, ensaio e diários. O seu último livro a chegar às livrarias reúne, em dois volumes, a sua obra poética: Novos Trabalhos, Novos Danos.
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1-O que é para si a felicidade absoluta?
R-Como acerca da verdadeira obra de arte reconheceu Camus, em Le Mythe de Sisyphe (1942), mais propriamente em A criação absurda, a felicidade só à medida humana deve ser concebida. Com os anos, fui entendendo que todo o absoluto é, afinal, relativo.
2-Qual considera ser o seu maior feito?
Tirar consequências, sempre que sou capaz, das realizações e condutas fracassadas.
3-Qual a sua maior extravagância?
R-Aceitar que, a haver um sentido para vida, o fiel da balança tanto pende para a ilusão como para o logro.
4-Que palavra ou frase mais utiliza?
R-Depois de ter pensado que Deus poderia ser resposta para tantas das minhas interrogações, passei a acreditar que o ser humano pouco aprendeu sempre que depôs: no patíbulo, o primado da razão; na vala comum, a crueldade com que pratica, cíclica e historicamente, ignominiosos actos de desumanização, enquanto o egoísmo das nações triunfa sobre o semelhante. Por isso, tanto em mim cala profundamente o queixume de Cristo na véspera do seu passamento no Calvário: “Pai, por que me abandonaste?”
5-Qual o traço principal do seu carácter?
R-A hesitação entre a necessidade de me convencer da validade do meu carácter e a coragem de assumir a falta dele.
6-O seu pior defeito?
R-Ficar ressentido (apesar de reconhecer que o direito ao ressentimento humanum est) por não ter sido capaz de prever para prover.
7-Qual a sua maior mágoa?
R-Não me ter perdoado sempre que falhei, porque isso se deve ao facto me ter faltado discernimento para identificar o que havia sido: “questão comigo” e não com o mundo.
8-Qual o seu maior sonho?
R-Reconhecer que os caminhos só se descobrem depois de neles nos termos perdido.
9-Qual o dia mais feliz da sua vida?
R-Todos os dias, até hoje, foram o meu dia; o dia, o ápice em que fui capaz de suspender, a tempo, e por um instante, o desejo de viver.
10-Qual a sua máxima preferida?
R-Ainda a mesma com que a Escritura me iluminou, há largos anos, e a sentença profética fez chegar ao meu entendimento (leia-se: razão), a mais bíblica das verdades: “Não julgarás”.
11-Onde (e como) gostaria de viver?
R-Como o desconhecido de Saint-Exupéry que: “(…) amava o mar da sua única tempestade vencida”, já só o silêncio tumultuoso dos anos me vai conciliando comigo mesmo; já só o tumultuoso silêncio do tempo que falta (por excesso, não por defeito), ao ponto de ser em si bastante para viver onde não estou.
12-Qual a sua cor preferida?
R-Enquanto apreciador (digo: amante) das cores com que natureza, sem nada exigir, ofereceu à pintura o milagre da tela, todas as cores são a cor de preferência, à medida que a luz da terra se extingue, e eu com ela.
13-Qual a sua flor preferida?
R-Ah, as flores, todas nos querem bem, e de todas nos vamos lembrando para aprender a regra de nos esquecermos de nós.
14-O animal que mais simpatia lhe merece?
R-Todos os bichos da terra – como já intitulei um pequeno livro infanto-juvenil sobre os direitos dos animais. Com o garbo do cavalo entregue à mão que o conduz, é ainda a fidelidade do cão que me traz de volta a recompensa de uma infância que, na velhice, mais parece ser já espécie de fuga para frente.
15-Que compositores prefere?
R-A música, como o tempo (porque dele nada se sabe) é o ser; a composição, dos clássicos à mais decepcionante música contemporânea, o sendo que vai do ser-para-a-vida ao ser-para-a-morte. De Beethoven a Einaudi, por exemplo, recebo/ escuto o que há de memória e projecto em cada um.
16-Pintores de eleição?
Parafraseando o que Woody Allen disse da eternidade que era: “(…) comprida, principalmente no fim”, a pintura foi-me sempre breve, desde que me conheço, e infinitamente longa no sempre presente da duração. Incorrendo no risco de trair o engenho que devoto a todos os que deram (a) vida à arte de pintar, entre os Brueghel e os Amadeo (de Modigliani a Souza-Cardoso) que a ilusão de juntar na mesma paleta todas cores do mundo venha em meu auxílio.
17-Quais são os seus escritores favoritos?
R-Qual dos que li, e tantos foram, me perdoaria por não os ter sabido ler?, de lhes ter faltado à palavra (de honra)?, de os não ter interpretado como devia?, e menos ainda de os não ter compreendido, enquanto poetas, novelistas, dramaturgos, filósofos, ensaístas… Trazendo-os comigo, desde um passado remoto, resta-me lamentar ter deixado pelo caminho todos os que me ensinaram a ler, a escrever, todos os que contribuíram para que a memória se convertesse no almejado devir – porque todos se vão tornando passado e o que escreveram (na língua materna, ou não) permanece, em todos os tempos, em lugar nenhum – deem eles pelo nome de: Hermann Broch, em A morte de Virgílio; Robert Musil, em O homem sem qualidades; Thomas Bernhard, em Extinção; Italo Calvino, em As cidades invisíveis; Clarisse Lispector, em A maçã no escuro; Vergílio Ferreira, em Para sempre.
18-Quais os poetas da sua eleição?
R-A haver escolha possível, fico-me pela impossibilidade da escolha, já que a poesia de todos foi, desde sempre, a poesia de alguns; e esta, a poesia de todos. Cúmplice do crime que, em última análise, e a ajudar o coração a levar a melhor sobre a razão, recordaria Homero, que foi todos, e nenhum; Bashô que, de tanto querer à natureza, com ela se confundiu; T.S. Eliot, Elytis e Sylvia Plath, que da poesia fizeram, como diz o autor de Citadelle: “santuário para o amor”; e Miranda, Camões, Cesário, Pessanha, Fernando Pessoa/ Campos e Mário de Sá-Carneiro; Herberto Helder e J.C de Melo Neto, por que não?, que realizaram o prodígio de nos deixar sem palavras para dizer o que é a poesia.
19-O que mais aprecia nos seus amigos?
Porque pensar a amizade implica perder amigos (um outro perdeu países), não me perdoo o equívoco de ter tido tantos, e de outros tantos ter perdido, porque deixaram de ser leais.
20-Quais são os seus heróis?
Identificar heróis é também forma de os desconhecer, e admirá-los, talvez esquecer que um dia tiveram direito a existir, e enquanto anti-heróis: ascender ao conhecimento do mundo porque houve quem os deu a conhecer.
21-Quais são os seus heróis predilectos na ficção?
R-Das predilecções, e da falta delas, também se faz predilecção, tendo em conta que negá-la é, porventura, vivê-la. Por ter resistido à erosão da temporalidade, Ulisses terá escapado à desfiguração histórico-literária de todos os tempos & lugares, graças à cegueira de Homero, e quem sabe?, aos herdeiros dela.
22-Qual a sua personagem histórica favorita?
R-Tal como o tempo que, segundo se crê, melhor se revela por/ e através da ocultação, as personagens históricas não raro entram em falência: ou porque fizeram parte do número a que, segundo Spinoza, foram somando zeros; ou porque a duração da fama obscureceu a imagem que delas se fez, de Péricles a Platão; de Gandhi a Guevara.
23-E qual é a sua personagem favorita na vida real?
R-A ser verdade que cada vez menos se morre pela(s) causa(s) que se defende(m), o que fez história na vida real de cada geração foi dar ouvido(s) a quem/ ao que nos leva a renunciar aos ideais que julgávamos eternos, todo o favorito/ favoritismo tem os dias contados, indo morrer mais tarde ou mais cedo às mãos do carrasco de serviço: à globalização crescente; à guilhotina dos media; ao enforcamento público de políticos corruptos, sejam eles déspotas do calibre de Hitler ou Putin; resistentes da estirpe de Aung San Suu Kyi ou Zelensky.
24-Que qualidade(s) mais aprecia num homem?
R-Lida com olhos de ler, há meses, a edição de O homem sem qualidades, leitura precedida de ensaios sobre a obra, começo a convencer-me que o bicho-homem continua a não ser fiável, a menos que, ao terceiro dia, como lembrou o autor de Le Petit Prince (1943): os granitos deem mármore, os cardos rosas, a aridez fontes, se mais não for por razão de honestidade, de carácter.
25-E numa mulher?
R-Bem, a beleza continuará a ser essencial, viniciusamente falando, mas que por ela tantas vezes se morre de coração amargurado é facto; e, depois, venha de lá o primeiro que garanta acreditar no sexo dos anjos.
26-Que dom da natureza gostaria de possuir?
R-O de ser-tempo, isto é: de como o tempo ter a ordem já sabida.
27-Qual é para si a maior virtude?
R-Reconhecer que o amor do que deu a vida por outrem, como o padre polaco em Auschwitz, não foi de amor por si, mas pelo mundo.
28-Como gostaria de morrer?
R-Com a certeza (a pesar de considerar fiável a utilidade do inútil) de que tenho vindo a deixar de ser prisioneiro de mim mesmo.
29-Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
R-Decididamente não gostaria de regressar. A ter de o fazer, regressar como alguém – o Santo de Assis, por exemplo – que viveu como ser-para-a-vida e não como-ser-para-a-morte.
30-Qual é o seu lema de vida?
R-Já tive um ou outro lema de vida, embora me faltasse quase sempre vontade para o confirmar; contudo, a desilusão desvaneceu a coragem de suportar as 40 chicotadas com que a vida nos confere o estatuto de homem.
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Vergílio Alberto Vieira na “Novos Livros”: Entrevistas