Vergílio Alberto Vieira: “Registo diário de longo curso”
1-Mais um volume dos seus diários (este de 2024) e uma dúvida: porque escreve diários?
R-É verdade, mais um volume (copioso) forjado num género literário, ou paraliterário?, cuja matriz se assemelha à dos livros de bordo, registo diário de longo curso; e como diria o filósofo José Gil acerca da teologia racional (que considera anti-filosófica), pronto a introduzir: “fé nas premissas da prova.” Ainda assim, discurso metódico nem sempre carthesiano – género de serviço domiciliário ao orador – em apuros com a interrogação existencial que o retém n’A Casa dos Expurgos. Eis porque, com a idade, o(s) diarista(s) se vai/ vão sentindo intelectualmente sitiado(s), sob a ameaça de cataclismos globais (guerras, genocídios, deportações, fome, epidemias, desvarios climáticos), cumprindo pena (suspensa, quando muito) pela condenação que me/nos impede, e volto ao autor de Caos e Ritmo, de algum dia se usufruir do direito de: “abraçar o infinito sem romper os laços da finitude.” (Cf. Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2018, p. 257).
2-Em especial nestes 12 meses de 2024 o que lhe mereceu lugar de destaque, de espanto e de interrogação?
R-Enfeixados com atadura de palha dos molhos de trigo – os galegos chamam-lhe maroma – os dias são a lavoura do diarista: seu lugar, e não-lugar, em que foi (im)plantando registos de natureza literária, filosófica, cultural, artística, ecológica e espiritual, safra do real quotidiano: acontecimentos, observações, comentários, leituras, encontros/desencontros, apontamentos/desapontamentos, identificados pela ensaísta brasileira, Fabíola Guimarães Pedras Mourthé, prefaciadora d’A Casa dos Expurgos, em todo o caso: denunciadores de “situações históricas concomitantemente actuais”, ou como diria Ricardo Reis contador de: “contos contando contos, nada”, e dar ideia de que não tem que fazer. É aí que, entre a constância das nossas idealizações e a inconstância dos actos – hoje, como no tempo de Montaigne – o diarista aparelha a charrua, vira a leiva, semeia e colhe, isto se a semeadura vingar, e vier a ser lavoura: umas vezes, arcaica como a de Raduan Nassar; outras, sentenciada pelos efeitos nocivos da produção transgénica. De qualquer modo, inescapável às leis de mercado e à especulação mercan(es)tilista que atormentam a condição humana, desde que a humanidade contempla: ora os felizes da terra de que falava Herculano, ora Les damnés de la terre, historicamente assinalados por Fanon.
3-E nos outros géneros: poesia, ficção? O que está a escrever por estes dias?
R-Com a jornada em fim de linha – o ano em curso será o último do conjunto de oito volumes de diário, linha de produção, iniciada com Destino de Orfeu (1987) – estarão criadas condições para retomar projectos, reformular livros, reler obras (nomeadamente, os clássicos) cuja leitura, à época, pouco ou nada abonou a meu favor. A poesia voltará a ser reunida em 2026, e pela última vez, (encerrando o ciclo que vai de 1971 a 2026), agora, porém, em três volumes, com a particularidade de acrescentar à edição de Novos Trabalhos Novos Danos (2021) o poemário Rio de Insondáveis Águas (2024) e o inédito: Te loquor absentem; a ficção será retomada, reescrevendo edições que deverei refundir, e aprofundar temáticas autobiográficas não de todo exploradas. Quanto à dramaturgia/ texto dramático, com a encenação da peça Parábola do Rei Morto/ D. Sebastião de Portugal, agendada pela Companhia de Teatro de Braga para Março de 2026, creio ter de ficar por aqui, uma vez que o drama: Por nada deste mundo e a comédia: To Work, só conheceram publicação através das revistas Delphica/ Artes & Letras (2013-2017) e Quaderna/ Literatura y Arte (2017-2019). Soma-se a isto, a tradução de poesia: depois de T.S. Eliot, edições de Four Quartets / Quatro Quartetos (2025) e The Waste Land / Terra Inóspita, a circular com a chancela da Companhia das Ilhas, aguardam edição: El Cántico Espiritual, de San Juan de la Cruz, e Anabase, de Saint-John Perse, sonho(s) de tantas noites perdidas. Por último, e no capítulo da literatura de leitura infantil e juvenil, concluí no verão passado a peça: Eu fiz um favor ao rei, teatrinho de/ para fantoches, há bastantes anos idealizado. Eis, pois, a razão pela qual creio estar em retirada por não saber que rumo editorial poderá ser dado a duas dezenas de originais (poesia, narrativa) que foram ficando na gaveta, desde o século passado. A menos que o juízo (crítico) tal não permita, e ao contrário de Álvaro de Campos, terminou o meu tempo de guardar cartas: nem as que me escrevem, nem as que não me são escritas.
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Vergílio Alberto Vieira
A Casa de Expurgos
Rosmaninho 16€
Vergílio Alberto Vieira na “Novos Livros” | Entrevistas