Annie Ernaux e o acontecimento memorável para pacificar e cicatrizar

CRÓNICA
| Célia Gomes

Todos temos memórias para desbravar e apaziguar. Annie Ernaux tem um acontecimento memorável para pacificar e cicatrizar. Acontecimento não festivo que nos transporta para um tempo de leis injustas, de falso moralismo, de famílias castradoras e de um precoce amadurecimento, onde florescem amargas recordações. Ocorrência que remonta a 1963, época em que o aborto era ilegal, censurável e discriminatório, mas   necessário. Tempos em que, amiúde, o enlace e dança incauta de corpos ávidos de prazer se transformava em carmim bailado de morte. Bailado este tendo por música, uma gravidez indesejada que culminava em aborto levado a cabo em locais e com instrumentos sem as mínimas condições de higiene onde espreitavam as velozes septicémias e a afoita foice. E é nesse episódio, vivido na primeira pessoa, que Ernaux espeta com mestria e acutilância, aguçada faca fazendo jorrar uma hemorragia de factos, datas, nomes, lugares que só estagna quando cessa a sua narração, ficando assim cicatrizado o acontecimento  da sua curta e interrompida gravidez . Aborto onde resvala medo, impotência, desalento («estava numa errância sem objetivos») e principalmente a solidão. Claúdia Sampaio escreve que «cada solidão tem a sua própria impressão digital», a de Ernaux tem sulcos marcados pela luta, pelo silêncio e pela indelével coragem. Coragem para decidir, coragem para prosseguir, coragem para enfrentar o sofrimento. «Uma mulher tinha-me contado que um entendido lhe desmanchou um filho, dizendo quanto à dor o seguinte «senti-me tão mal que me agarrei ao lavatório». Também eu estava disposta a agarrar-me ao lavatório».  A autora, ao longo da narrativa, despe-se vagarosamente, não para mostrar a gravidez presente no seu corpo («tenho a sensação de estar grávida de uma forma abstrata»), mas para mostrar a gravidez do seu pânico, do seu desânimo, da sua resistência.  Recorre ao uso do imperfeito e da descrição minuciosa dos factos para mostrar um tempo labiríntico, lento, denso, como um nevoeiro que atravessou sem lanternas, sem faróis, sem companhia – «estava numa errância» de objetivos.».
Das frinchas das páginas desta obra escorre provação, homenagem e trauma. Provação a todo o constrangimento que  Ernaux sofreu, quer no dia do aborto,  «sinto que essa mulher que se apressa entre as minhas pernas , que introduz o espéculo me está a dar à luz. Nesse momento, matei em mim a minha mãe», quer aquando das complicações clínicas que lhe sucederam, e que descreve com precisão e clareza, levando o leitor a ficar suspenso na sua exposição, a aguardar o uivo que não ecoa  «agora tinha um sexo exibido, esquartejado, um ventre raspado, aberto ao exterior”. Homenagem a todas as mulheres que antes dela tinham galgado esses caminhos de breu à procura de ajuda para expulsar o não desejado, «milhares de raparigas subiram uma escada, bateram a uma porta, atrás da qual estava uma mulher acerca da qual nada sabiam, a quem iriam entregar o seu sexo e o seu ventre». Duro, muito duro de ler e de imaginar! E o trauma que fica a boiar na bacia junto à torturante sonda e no vagão do comboio que a conduziu  à «fazedora de anjos». «Não me lembro quando regressei ao mundo normal, isto é, aquele em que a visão de um lavatório ou da cabeça dos passageiros num comboio já não significa um problema nem uma aflição». Significando, acrescento, vitória e cura. As cicatrizes são recordações que mais tarde podemos acariciar e Ernaux só pode afagar a sua, quando terminou a escrita deste confrontante livro, saindo da noite em que vivia. «Ter vivido determinada coisa, seja ela o que for, dá-nos o direito imprescritível de a passar a escrito. E não existem verdades inferiores». Pois não Ernaux!
Saboreei este livro com desconforto mas de forma faminta e quando cheguei à ultima página pus a tocar «Nocturne No2», de Chopin  e percebi porque é que Ernaux ganhou o prémio Nobel. Se esta grande escritora fosse uma flor, com certeza seria uma papoila, com a cor do seu arrojo.
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Annie Ernaux
O Acontecimento
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