Carlos Martins: “O fascismo, ainda que acomode elementos populistas, não é uma ideologia populista”

P-Qual a ideia que esteve na origem deste livro «Fascismos. Para além de Hitler e Mussolini»?
R-Foi, acima de tudo, a minha convicção de que a investigação académica não deve estar dissociada da divulgação de conhecimento ao grande público. Assim, preocupei-me em escrever um livro com uma linguagem simples e acessível, no qual os especialistas provavelmente não encontrarão nada de novo (a não ser, talvez, a “nova” definição de fascismo da minha autoria), mas que pode servir de introdução a quem ainda não sabe muito sobre o tema e queira começar a aprender um pouco mais.

P-Neste livro estuda o fenómeno do fascismo em oito países (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Itália, Reino Unido, Portugal e Roménia): quais são as principais linhas comuns identificadas na ideologia e nas práticas dos partidos fascistas nesses países?
R-No que toca ao conteúdo doutrinário do fascismo encontro seis componentes que defendo serem comuns a todas as variantes: o nacionalismo (um culto extremado da nação, que em algumas variantes pode ser definida em termos raciais, como no nacional-socialismo alemão); o objetivo de reforçar o poder do estado (ainda que a extensão e propósito desse reforço possa variar nos diferentes tipos de fascismo e por vezes o objetivo ainda não esteja devidamente formulado na fase inicial de um movimento); a ideia de criar uma síntese (de unir os opostos dentro da comunidade nacional de maneira a criar uma “nova” sociedade coesa, que transcenda os seus conflitos internos); o objetivo de realizar uma revolução (que não remete para a forma como este conceito é geralmente entendido, mas antes para a criação de um “homem novo”, de uma sociedade “nova” e, em última análise, de toda uma “nova” era histórica); o culto da autoridade das novas elites (que devem ser elites “heróicas” que, com a sua força e vitalismo, conquistam o direito de liderar a sociedade e substituir as antigas elites “decadentes”); e o culto da violência (ainda que, por vezes vezes, alguns fascistas reformulassem o seu discurso para darem a entender que apenas usavam a violência como autodefesa, o seu vocabulário marcial trai as suas convicções e demonstra que concebiam o mundo como um lugar de luta constante). Nas suas práticas, os partidos e movimentos fascistas caraterizaram-se, entre outros elementos, por: o culto da chefia carismática; a adoção de rituais, uniformes, símbolos e liturgias, que se pretendia que fossem alargados a toda a sociedade após a conquista do poder; a tentativa de mobilização constante das massas populares; a adoção de métodos violentos (por exemplo, em combates de rua contra militantes de esquerda), para o que foram criadas organizações paramilitares, etc.

P-E em Portugal: podemos dizer que houve um fascismo português?
R-O fascismo português existiu e remete, acima de tudo, para o Movimento Nacional-Sindicalista, de Francisco Rolão Preto, ativo entre 1932 e 1934 e cuja doutrina apresenta os elementos identificadores que expliquei na resposta anterior. O Estado Novo, por sua vez, remete para os típicos regimes conservadores da época, que parcialmente se inspiraram no regime italiano, mas que em última análise diferem do fascismo porque não se basearam num partido de massas “plebeu” (para usar uma expressão de Fernando Rosas) que se dizia “revolucionário” e cujos líderes procuravam transformar a sociedade e criar “novas” elites heroicas com base no vitalismo e nos valores marciais. No entanto, como uma boa parte da historiografia internacional tem vindo a referir mais recentemente, apesar destes traços distintivos (poucos, mas importantes), as diferenças entre o fascismo e o conservadorismo antidemocrático da época não eram suficientemente vincadas para que não existissem influências mútuas e aproximações em alguns momentos. Por isso, defendo que regimes como o de Salazar (ou de Dollfuss na Áustria, Tiso na Eslováquia, Metaxas na Grécia, Smetona na Lituânia, etc.) possam ser chamados de “conservadorismo fascizante”, o que, não sendo exatamente o mesmo que fascismo, indica a existência de elementos de inspiração fascista.

P-A Europa está a assistir ao crescimento notório de partidos de extrema-direita que muitos conotam com os velhos fascismos: do seu ponto de vista, trata-se do renascimento da ideologia ou é algo de novo?
R-Bem, em primeiro lugar, devo dizer que o meu estudo desta “nova” direita não foi tão aprofundado quanto o da do entre guerras, pelo que devem encarar as minhas opiniões com um pouco mais de ceticismo. Em todo o caso, refiro que, tal como na era do entre guerras, esta “nova” direita é heterogénea, e nela podem, sim, ser encontrados partidos e movimentos passíveis de serem caraterizados como fascistas. Era, por exemplo, o caso do Aurora Dourada da Grécia, é o do movimento Casa Pound em Itália, e o do Jobbik da Hungria, há alguns anos (julgo que este último partido tem agora uma posição mais “moderada”, se assim se lhe puder chamar). No entanto, a maioria dos partidos que têm vindo a aproximar-se do poder, mesmo se alguns deles apoiados por franjas fascistas minoritárias ou com origens remotas no fascismo, pertencem antes a uma direita radical cujos principais perigos são: 1- a defesa de um projeto reacionário que reverta uma boa parte dos progressos alcançados nas últimas décadas pelos movimentos antirracistas, feministas, LGBT, etc., 2- um ceticismo para com as instituições da democracia liberal (embora não a sua rejeição completa) que me faz acreditar que esta direita radical tem no seu “core” um impulso, admitido ou não, para o que chamarei de semi-autoritarismo (ou talvez “autoritarismo competitivo”, para usar um termo da ciência política). Não sendo este tipo de regimes propriamente uma novidade (no entre guerras, por exemplo, o regime húngaro de Miklós Horthy poderá porventura ser chamado de semi-autoritário), representa, não obstante, uma ameaça para a democracia cuja natureza é diferente da de um projeto político fascista.

P-Populismo e fascismo por vezes confundem-se: essa confusão é correcta ou é uma simplificação?
R-É uma simplificação. O fascismo, ainda que acomode elementos populistas (que podem tornar-se mais ou menos relevantes consoante os contextos), em última análise não é uma ideologia populista. O populismo enquanto “micro-ideologia” que concebe o “povo” como uma entidade “pura” por oposição às elites corruptas, e que, com implicações diferentes, pode surgir tanto à direita como à esquerda, tem uma história que remontará, talvez, ao século XIX. No entanto, se a pergunta remete especificamente para aquilo que, na ciência política se convencionou chamar de “Direita Radical Populista”, há diferenças entre esta última e o fascismo, como referi na minha resposta anterior.

P-As ameaças de líderes autoritários e de partidos de inspiração fascista são um real perigo para a Democracia ou as estruturas democráticas têm força suficiente para resistir e combater?
R-Se me restringir ao uso mais limitado da palavra “fascista”, julgo que, por enquanto, não há real possibilidade de um projeto fascista alcançar o poder. Focando-me nos partidos de direita radical que descrevi anteriormente, acredito que estes representam um perigo real. Se as estruturas democráticas têm ou não força para o combater com sucesso dependerá, certamente, de caso para caso. Vimos como falhou a tentativa de golpe de Donald Trump. Não sabemos como terminarão as próximas. Se um líder com pretensões autoritárias tiver conquistado o apoio de uma parte substancial das elites (e sobretudo das forças armadas) o resultado pode ser mau.
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Carlos Martins
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