Chico Buarque: visita guiada com romance na mão
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Visita à cidade com o guia numa mão e o romance do Chico na outra. Os húngaros são muito renitentes em falar, a cidade tão neutra e monumental como um teatro ao ar livre, o rio de onde saiu musica, corpos mutilados e percas indigestas.
O livro.
Uma viagem ou várias viagens entre o Rio e Budapeste, sempre mais Peste, sempre com a língua de permeio, personagens perdidas porque inseguras, a loucura da celebridade e da sorte madrasta onde o amor se confunde sempre com o respeito, tudo tão cinzento como as cinzentas nuvens da Hungria com um pouco de sol, muito pouco de sol brasileiro pelo meio.
Como conhecer uma cidade? “melhor que percorrê-la em ônibus de dois andares é se fechar num aposento dentro dela.”
Uma espécie de Kundera (perdoa-me Chico mas foi o que senti), em muitos momentos de menino perdido entre dois mundos “levou o revólver ao ouvido esquerdo, como se atendesse a um telefonema urgente”. Muitos táxis amarelos nesta cidade estranha, com gente que não chega a ser antipática porque só nos ignoram como se não existíssemos. Quando falamos português olham com a curiosidade disfarçada das línguas difíceis.
O Danúbio visto de dentro de um barco onde não se via quase nada pelo embaciado dos vidros com chinesas histéricas e eslavos circunspectos, o Danúbio Azul enjoativo nos altifalantes e o Chico “Vi passarem alguns minutos de Danúbio, verde-musgo e bem mais largo do que aparentava no mapa”. A maior Sinagoga (tapem a cabeça) e a maior catedral (destapem a cabeça), tudo muito confuso mas belo, tudo construído como se fosse durar para sempre, pobres coitados!
E a prosa do Chico, sempre solta, mesmo quando se aprisiona nas línguas das mulheres difíceis ou nas personagens que nunca sabemos onde nos vão levar como elas própria não sabem nem nenhum de nós nunca.
Um dia de tanto frio que até os ossos doeram, as pessoas sem alegria aparente passando por mim sem frio, deve existir algum erro no que pensamos serem os outros, lemos o texto como se fossemos ou tivéssemos sido nós a escrevê-lo e é esse o segredo do Chico, nada é tão suave e difícil e belo e intransigente “renunciei de vez à língua magiar”, nada nos aproxima de ninguém, a não ser talvez aquilo que nos afasta e nos despe, como se fossemos personagens de uma vida diferente da nossa, “assim como se esquece o nome de pessoas próximas quando a memória começa a perder a água.”
Obrigado, Chico. Vamos continuar.
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Chico Buarque
Budapeste
Companhia das Letras 16,65€