Eduardo Cintra Torres: “Procuro nunca prever o futuro… falho sempre…”
[Fotografia: Miguel Baltazar, Cofina]
Eduardo Cintra Torres é um investigador na área da comunicação com uma obra consistente em que abordou temas como a televisão e a publicidade.
Acaba de lançar dois novos livros sobre a publicidade em Portugal: um ensaio e uma história ilustrada com uma registo muito visual. Duas obras pioneiras e de referência para ler com toda a atenção.
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P-Olhando para a sua obra, um traço que se evidencia é a atenção dedicada à televisão e à publicidade: como surgiram estes temas no seu percurso?
R-Desde muito novo prestei atenção à televisão e à publicidade com olhar crítico, ainda antes de estudar ambas as matérias. A publicidade na RTP era, antes e depois do 25 de Abril, um dos senão o melhor programa de TV, para as crianças e os jovens… Mais tarde fui convidado pelo Público para escrever crítica de televisão, a partir de 1996, e, quatro anos depois, fui eu quem propôs a criação de uma coluna de crítica de publicidade, na revista Pública, do jornal. Durou menos de um ano, com muita pena minha, mas pude voltar a escrever crítica de publicidade sistematicamente no Jornal de Negócios, de 2003 a 2018, Foram quase 800 artigos semanais. Entretanto, comecei a leccionar no final do século passado em universidades, em especial Estudos de Televisão e Análise de Publicidade, até hoje. Com a minha formação universitária desde 1975 em História, Comunicação e Sociologia penso que posso dar perspectivas abrangentes sobre ambas as áreas disciplinares.
P-Olhar, analisar, estudar e escrever sobre publicidade decorreu do trabalho sobre a televisão ou foi um processo autónomo?
R-Foi ao mesmo tempo autónomo e simultâneo. Ambos os trabalhos se enquadram no âmbito alargado dos Estudos Mediáticos. As ferramentas de análise (da Sociologia e da História, da Semiótica Linguística e Visual, da análise quantitativa) em grande medida coincidem. Por vezes os dois caminhos cruzam-se, quando pensamos, por exemplo, em publicidade na TV. O essencial é manter e desenvolver o pensamento crítico. Actualmente, pelo que vou vendo, há menos interesse no pensamento crítico, independente, sobre a publicidade e o marketing. A ideologia hegemónica do capitalismo domina à «esquerda» e à «direita».
P-Agora, surge com dois novos livros de certa forma complementares: um ensaio sob a forma de história da publicidade em Portugal e uma história ilustrada. O que esteve na origem das duas obras?
R- Na origem destes dois livros esteve um convite da Fundação Amélia de Mello para escrever sobre a história da publicidade da CUF, no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva. Achei que era uma oportunidade única para escrever uma História da Publicidade em Portugal. Era preciso muito tempo e um apoio de retaguarda, que a Fundação me forneceu. Por outro lado, a falta de estudos gerais e sectoriais nesta área era tão grande que seria difícil escrever uma história dos 150 anos de publicidade do Grupo CUF sem dominar a História da Publicidade do país em geral. Deste modo, a concordância da Fundação à minha proposta de alargar o âmbito do estudo, da CUF para Portugal e de 150 anos para toda a História do país, do país, foi uma oportunidade extraordinária. O segundo desafio foi o de fazer, não um livro de texto com algumas imagens, mas dois livros, um sem imagens, outro só de imagens. De novo tive a concordância e o apoio da Fundação Amélia de Mello, através do seu secretário-geral, Jorge Quintas. A seguir foram cinco anos de trabalho, solitário, mas muito gratificante. Estou muitíssimo satisfeito com o resultado. Esta minha História da Publicidade em Portugal, um volume de 1136 páginas resultantes de décadas de estudo e de cinco anos de investigação dedicada, é, a meu ver, um compêndio de História, a primeira História da Publicidade em Portugal disponível a investigadores, interessados e curiosos. Espero que cumpra o seu objectivo de serviço público de avanço do conhecimento, de registo documental e de análise crítica. Também a História Ilustrada é um volume original, como nunca houve nenhum em Portugal, com mais de 700 imagens de e sobre a actividade publicitária no país, da Idade Média a 2022.
P-Com a sua investigação, quais são as etapas mais marcantes da publicidade em Portugal?
R-Quando comecei a investigação, verifiquei que os poucos autores que procuraram periodizar a História da publicidade em Portugal seguiam cegamente a habitual cronologia política. Achei essa periodização irracional, e por isso, a minha cronologia segue uma lógica que, atendendo aos contextos (político, económico, social, tecnológico, cultural), resulta da própria actividade publicitária. Deste modo, o primeiro período vai da Idade Média à Revolução Liberal, o segundo de 1820 até à revolução da imprensa popular, a começar em 1865, o terceiro de explosão da publicidade, o quarto começando com o arranque da publicidade científica, de 1914 a 1960; este ano da entrada na EFTA marca para mim o arranque da sociedade de consumo, a qual se impõe necessariamente com a publicidade e com o rápido desenvolvimento da televisão. De 1960 a 2000 – o quinto capítulo -, foi um período de grande optimismo, em especial com a profissionalização das e nas agências de publicidade, mas terminou com a mudança para o digital, que coincidiu com o novo século – o sexto e último período nos meus dois livros.
P-A realidade portuguesa está alinhada com o resto dos países ou teve um percurso próprio e autónomo?
R-É compreensível que a actividade e a criatividade publicitárias dependam de uma economia capitalista dinâmica e de um ambiente sócio-cultural correspondente. Por isso, podemos dizer que a realidade portuguesa está alinhada, mas em geral segue um pouco o que se vai fazendo em países mais desenvolvidos. A dimensão do mercado nacional, o comércio e a indústria, o desenvolvimento das comunicações (estradas, comboios, correios, telégrafo…), tudo contribui para a dinâmica publicitária ou o seu atraso. Portugal acompanhou plenamente a evolução da publicidade nos países desenvolvidos, mas em menor escala e com menos recursos humanos, materiais e empresariais. Houve momentos em que a publicidade portuguesa esteve à altura do que se fazia em países mais dinâmicos, como a obra de Raul de Caldevilla entre 1914 e 1923, que estou nesta altura a investigar em detalhe com um colega da Universidade do Porto. São os próximos livros! Quanto à segunda parte da pergunta, julgo que a realidade portuguesa não teve um percurso próprio e autónomo, no sentido em que não criou nenhum paradigma diferente. A publicidade nacional procurou sempre seguir o que se fazia de impactante e inovador em França, Inglaterra, Estados Unidos e até Argentina. Do ponto de vista institucional, houve desde muito cedo — já no final do século XIX — uma ligação das agências de publicidade a agências estrangeiras.
P-No século XX, a existência de censura condicionou muito o desenvolvimento da actividade publicitária?
R-Directamente condicionou muito pouco. Indirectamente, ao censurar o jornalismo e os media em geral, e simplesmente por existir, terá condicionado alguma coisa, mas não encontrei documentos em quantidade que comprovem um impacto forte. A publicidade mundial não era política e «de causas», como agora, pelo que raramente colidia com a ideologia vigente. O objectivo da publicidade era vender produtos e serviços, não era vender «causas» (ou vender produtos dizendo apoiar «causas»). Acrescente-se que, quer na I República quer no Estado Novo, uma tarefa da censura era a defesa do consumidor, no que não se distingue da legislação e da acção dos reguladores da legislação e dos reguladores a partir da década de 1980.
P-Vivemos no século XXI em que muitas das regras parecem estar a ser postas em causa em (quase) todos os domínios: como está a publicidade a reagir? Tem-se reinventado?
R-Sim, tem-se reinventado, mas também tem regredido ou retomado formas antigas que parecem novas. Por exemplo, há plataformas na Internet abertas aos nossos anúncios particulares e amadores, que repetem a fórmula dos «classificados» na imprensa a partir do final do século XIX. A reinvenção tem sempre a ver com a necessidade sentida pelos publicitários e anunciantes de estarem em sintonia com a sociedade e com os seus públicos-alvos. No passado, se a sociedade era machista, os anúncios também podiam sê-lo. Hoje, com as preocupações ambientais, até as petrolíferas defendem o ambiente, pelo menos nos anúncios. No geral, a publicidade criativa perdeu importância, dada a dispersão de meios com a internet e dado o crescimento avassalador da área do marketing, que tomou conta da publicidade. Por várias razões, a publicidade está, a meu ver, muitíssimo menos criativa do que no passado. Basta pensarmos no impacto que causou no país e nas próprias agências o recente anúncio do Ikea baseado nos 75.800 euros encontrados pelo Ministério Público numa estante do gabinete ao lado do do primeiro-ministro. Sentiu-se um certo alívio: eis que volta uma campanha realmente criativa, que cumpre os velhos preceitos de chamar a atenção, criar interesse, e eventualmente criar desejo e a acção de compra. São raras, hoje, as campanhas impactantes como esta, e é uma pena. Mas ela teve uma grande utilidade: mostrou o impacto que a boa publicidade pode ter, mostrou aos outros anunciantes, marketeers e criativos das agências que vale a pena ousar. Foi copiada por várias outras agências, o que mostra como os criativos e os anunciantes se sentiam numa camisa de sete varas — que eles próprios criaram para si mesmos.
P-Olhando para o futuro: o que podemos esperar da publicidade e dos publicitários portugueses nas próximas décadas?
R-Procuro nunca prever o futuro… falho sempre… e acho que todos falhamos. Basta pensar que a Inteligência Artificial poderá em breve alterar radicalmente a vida de todos, e de formas que me escapam por completo — e decerto poderá alterar significativamente o negócio, a criação e o consumo da comunicação comercial. Só consigo dar indicação do que a realidade do século XXI permite ver como tendências a curto prazo: será mais do mesmo; publicidade fraca, dominada por anunciantes medrosos, desinteressados dela e às mãos de marketeers que querem fazer anúncios para os seus amigos, com quem se reúnem à sexta e ao sábado no Bairro Alto ou na Ribeira. Muita publicidade, pouco criativa, parece-me desligada do mundo real e orientada para uma pequena faixa de jovens adultos, que amiúde nem sequer coincide com o público-alvo desses mesmos anúncios. Por outro lado, a internet foi uma caixa de Pandora. Entregámos o controle da comunicação às grandes «plataformas», como Google ou Facebook. A maior parte da publicidade passou ou quis assemelhar-se a materiais de marketing, sem magia, fingindo que não é publicidade. Os jovens com quem falo, de muitos países, julgam que aquilo não é publicidade e aprovam… mas é, e é fraca. Como sou optimista, julgo que será uma tendência deste tempo. Tempos melhores virão. Tudo muda, todo o mundo é composto de mudança.
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Eduardo Cintra Torres
História da Publicidade em Portugal
História Ilustrada da Publicidade em Portugal
Principia 28,50€/25€
Eduardo Cintra Torres na Novos Livros | Entrevistas