Libertação pela mão de um grande escritor

CRÓNICA
| agostinho sousa

Não é por acaso que na capa deste livro está mencionado que o autor escreveu “As velas ardem até ao fim”, de leitura obrigatória, de um autor nascido na Eslováquia em 1900 e que se exilou, por oposição ao regime pró-soviético da posterior Hungria, em 1948, acabando por ver a sua obra proibida nesse país.
O pano de fundo do enredo é o momento histórico das quatro semanas que durou o assédio do Exército Vermelho a Budapeste, no Natal de 1944, com base na vivência de Erzsébet, uma jovem de 23 anos, que procura refúgio para si e para o seu pai nos escombros de uma cidade sitiada e semidestruída.
Ambos fogem, ele por ser um cientista procurado pelos nazis e ela por ser sua filha, com identidades falsas, escondidos no que resta dos edifícios.
A história centra-se na sobrevivência que essa jovem terá de suportar no «seu» abrigo, juntamente com um grande número de outros fugitivos e refugiados, num espaço exíguo, onde os valores da vivência humana serão permanentemente postos à prova e em que essas relações, com destaque para as de confiança, acabam por dissipar-se.
Por fim, quando as tropas soviéticas conseguem penetrar em Budapeste, há um soldado russo siberiano que, ao entrar nesse abrigo, se depara apenas com essa jovem, sem saber que também aí resta um homem paralítico.
E a pergunta assalta desde logo o leitor:
– A jovem húngara, depois da fuga dos nazis, estará na presença do libertador soviético ou de um novo invasor?
Este livro foi escrito entre julho e setembro de 1945, mas apenas foi publicado em 2000, ano do centenário do seu autor e o que se passa entre estas duas personagens, incluindo a presença oculta e silenciosa da testemunha paralítica, será premonitório do que irá suceder à Hungria no pós-guerra.
É um romance trágico, sombrio, onde «há silêncios com quem não se pode discutir», mas belíssimo pela escrita sucinta e luminosa, pelo enredo e pela dúvida permanente do que se irá passar naquele cenário de absoluto caos, em que as vítimas, em momentos tão diversos, sob o jugo de invasores, tanto nazis como soviéticos, lutam pela sobrevivência entre a quase extinção dos valores da humanidade.
Um romance que também permite ao amor, tanto fraternal como carnal, subsistir como prova da existência e resistência humana.
Apareceu-me, por acaso, este extrato de Enrique Vila-Matas de “O Mal de Montano” que transcrevo:
«[Somerset] Maugham recorda-me sempre que existe a nobreza de espírito e que essa nobreza não procede do pensamento nem depende da cultura nem da educação. Tem as suas raízes entre os mais primitivos instintos do ser humano. É possível que na consciência de que é possível “a salvação do espírito” se possa encontrar o refúgio contra o desespero.»
Mais um livro crucial e de leitura obrigatória de Sándor Márai.
Espinho, 08/03/2024
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Sándor Márai
Libertação
Publicações D. Quixote  15,90€

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