
Neil Lawrence é um pensador que tem reflectido sobre os impactos da Inteligência Artificial nas nossas vidas. O seu livro é já uma referência e revela posições de um optimismo moderado sem escamotear as ameaças e os desafios que se colocam em inúmeras áreas.
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P-Ainda estamos numa fase inicial do processo de adoção da Inteligência Artificial nas nossas vidas: será já tempo de nos preocuparmos? A Inteligência Artificial é uma ameaça ou uma oportunidade?
R-É ambos. Como a maioria das ondas de tecnologia (uma possível excepção são os esgotos!), tem o potencial de ajudar e prejudicar. Mas, em muitos aspectos, mesmo sem IA, estamos à beira do precipício. A digitalização generalizada da nossa sociedade já transferiu as estruturas de poder das nossas instituições tradicionais para as mãos de algumas empresas poderosas, situação a que chamo oligarquia digital. Portanto, os riscos são elevados, esta nova onda de tecnologia digital oferece o potencial de capacitar os humanos individualmente: pela primeira vez, as pessoas comuns podem falar diretamente com uma máquina, indo além do que o melhor engenheiro de software conseguiria fazer apenas através de uma conversa normal. No entanto, estas capacidades também podem ser utilizadas para fortalecer ainda mais a oligarquia, empurrando-nos ainda mais para este caminho distópico. Muito depende da forma como os indivíduos reagem e utilizam a tecnologia.
P-Os impactos serão muitos e em áreas vastas. Onde prevê que haja mudanças mais significativas: no trabalho e nas empresas? Na vida pessoal e familiar? Na política e no funcionamento da democracia? Na escola e na forma como as pessoas aprendem?
R-Estão generalizados e todas estas áreas serão afectadas. Para ser claro, esta tecnologia não é “inteligência geral artificial”, cuja noção é um disparate eugenista. Mas é uma tecnologia que muda fundamentalmente a forma como interagimos com a informação. Conversar com a máquina dá-nos acesso às capacidades da máquina para ingerir informação. A máquina pode consumir informação 300 milhões de vezes mais rápido do que nós. É como se estivéssemos a caminhar na paisagem da informação e a máquina estivesse a viajar à velocidade da luz. A tecnologia de IA generativa quebra a barreira entre o ser humano e a máquina, permitindo que a máquina comunique nos nossos termos. As consequências são, por isso, enormemente perturbadoras porque alteram a nossa relação com a informação. Os únicos precedentes semelhantes que temos residem nas formas como a invenção da escrita, da imprensa e, mais tarde, da rádio mudaram a nossa relação com a informação. Mas, de certa forma, a nossa humanidade não muda. Um bebé hoje é tão indefeso como um bebé era na Mesopotâmia há 5000 anos, quando a escrita foi desenvolvida. E ouvir uma criança rir traz a mesma alegria aos pais que trazia aos antepassados mesopotâmicos.
P-No mundo futuro da explosão da Inteligência Artificial na sociedade contemporânea, a ética condicionará o futuro?
R-Acho que temos de ter cuidado com o que queremos dizer com ética. Os nossos debates têm sido dominados por noções simplistas de moral e ética e por ideias ultrapassadas sobre a sua origem. Infelizmente, as noções ingénuas rendem melhores manchetes. Predeterminar o futuro pela imposição das nossas ideias de moral e ética seria tão insensato como ter o nosso presente totalmente determinado pelas noções cavalheirescas medievais. Embora haja sempre lições a retirar das práticas dos cavaleiros medievais, o importante é que as nossas sociedades se guiem pelas nossas circunstâncias e pelas reacções do nosso povo a essas circunstâncias. Os desafios para o conseguir são anteriores aos nossos antepassados mesopotâmicos e persistirão pelos futuros milénios da existência humana. Na minha perspectiva, o mais importante é que perseveremos nos mecanismos que temos para debater e alcançar consensos… ou, pelo menos, aproximarmo-nos o mais possível do consenso. Isto significa garantir que os humanos se mantêm no comando de decisões importantes e que são responsabilizados pela sociedade em geral. Os nossos melhores mecanismos para o fazer continuam a ser o conjunto moderno de instituições democráticas, muitas das quais foram minadas pelas tecnologias digitais e pelo surgimento da oligarquia. Claro que a ética é importante, mas mais importantes são os mecanismos através dos quais partilhamos essa ética e mantemos a representação, e já vemos que estão ameaçados.
P-Quando lemos alguns autores, parece que tudo está controlado e que não corremos riscos: partilha desta ideia?
R-Fundamentalmente estou optimista em relação a estas tecnologias. Mas isto porque acredito que o pessimismo seria auto-realizável. Para superar os desafios, precisamos que os indivíduos sejam optimistas em relação ao futuro e trabalhem para o alcançar. Mas, para além disso, penso que precisamos de ser realistas quanto à ameaça que estas tecnologias representam, mas isso passa por um melhor reconhecimento dos danos que já causaram. Estamos à beira da distopia. Recuar exige optimismo e realismo em igual medida. As redes sociais podem remover as nuances do debate, por isso não é surpresa que o debate atual sobre a IA pareça ser dominado pela ingenuidade de todos os lados (os distópicos e os utópicos). Esta é uma das formas como as tecnologias digitais nos prejudicaram — danificaram os mecanismos que desenvolvemos para termos debates diferenciados. Mas, no trabalho de diálogo público que fazemos em Cambridge, descobrimos que, embora as vozes dos tolos sejam amplificadas, os membros do público ainda mantêm um cepticismo saudável e uma compreensão muito mais fundamentada das possibilidades e limitações destas tecnologias. Isto dá-me esperança de que possamos traduzir este entendimento no equilíbrio certo entre optimismo e realismo. O equilíbrio perfeito é impossível, mas isso não nos deve impedir de o procurar.
P-Somos seres únicos: inteligentes, criativos, emocionais. Numa palavra, humanos: isto poderia ser questionado?
R- Bem, isso está a ser questionado, e o uso do termo inteligência artificial geral está no centro disso. A ideia de que a nossa inteligência pode ser substituída por uma máquina. O caminho seguido é semelhante ao dos eugenistas. A ideia de que a inteligência é classificável e mensurável. E que a máquina pode, por isso, ter um melhor desempenho do que os humanos e substituir-nos. Mas esta é uma noção muito simplista de inteligência. Claro que se a inteligência é sobre a rapidez com que alguém consegue fazer cálculos, então a máquina já tem uma. Mas o que quero dizer em Humano, Demasiado Humano é que a inteligência é contextual, e a nossa inteligência é específica do nosso contexto, emerge das nossas fraquezas e limitações e é específica da nossa humanidade. Na medida em que devemos usar a palavra “inteligente” para a máquina, ela está apenas a emular a nossa inteligência humana. Isto pode ser útil, mas nunca poderá ser um substituto.
P-Finalmente, em áreas como as artes, a literatura, a poesia, o teatro ou o cinema: o que poderá acontecer num futuro próximo?
R-É muito disruptivo para os campos criativos, pois é uma nova tecnologia que se baseia na criatividade humana e que agora pode emular isso até certo ponto. É impossível dizer o que vai acontecer, mas penso que há dois aspectos que não vão mudar. Em primeiro lugar, preocupamo-nos com a atenção humana. Esse é o recurso limitado. Para nós, é importante saber se um ser humano gastou o seu tempo a preparar um ecrã ou se este foi feito em poucos minutos por uma máquina. Independentemente de um indivíduo conseguir distinguir entre os dois, continua a ser importante ter este toque humano. Isso nunca vai mudar. Em segundo lugar, os criadores humanos continuarão a encontrar formas de se diferenciarem das máquinas. Tal como os impressionistas responderam à fotografia procurando representar algo mais profundo na experiência humana através das suas pinturas, os artistas do futuro procurarão diferenciar-se da máquina. Agora, o computador pode sempre tentar copiar, por isso acho que podemos esperar que os artistas encontrem formas de transcender isso. As aCtuações ao vivo parecem ser um exemplo, mas deixo à imaginação muito maior dos meus colegas artistas traçar esses caminhos futuros. Estou ansioso por me maravilhar com a forma como o fazem.
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Neil D. Lawrence
Humano, Demasiado Humano. O que nos torna únicos na era da Inteligência Artificial
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