Um grande livro de uma grande escritora
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
Mais um grande livro de uma grande escritora, dotada de uma técnica espantosa e desconcertante. A continuação da louca história de Henry Tudor e Anne Boleyn pelos olhos frios e argutos de Thomas Cromwell. No início algo difícil de acompanhar até nos habituarmos ao virtuosismo da escritora “mas o Sol reapareceu com um calor escaldante e agora o ar está tão claro que se pode ver o Céu e espreitar o que estão a fazer os santos.”
A queda rápida de Anne Boleyn até ao cadafalso, um rei que mudou a religião de um país para se poder separar, a guerra à porta “A guerra está sempre desejosa de voltar outra vez.” A que novo século o dizem!
Um narrador que tanto fala em discurso directo como indirecto, diálogos que começam a meio de um pensamento e o contrário, o que nos leva a pensar, o que hei-de fazer convosco? Personagens misteriosas e equívocas, que grande História tem a Bretanha, mesmo com tantos deslizes. Os maus são mesmo maus, quase todos os outros também o são. Não há bons. “Quando Stephen entra numa sala, o mobiliário encolhe-se a fugir dele. As cadeiras recuam a correr. Os bancos agacham-se, achatados como cadelas a urinar.”
As vidas dos Santos também não são poupadas, muito menos os seus restos mortais e as relíquias (já Eça o sabia), um elefante morre no zoo de Londres, o seu corpo é requisitado para a abadia, “ora bem, para que queriam eles na Abadia de Westminster os restos mortais de um elefante? A não ser para tirar deles uma tonelada de relíquias e fazer ossos de santos dos seus ossos animais?”
Pode-se bem dizer que não se poupam ou sequer se escondem palavras nesta história, elas são importantes e determinantes para o desfecho, como em todas as situações conhecidas pelo homem, mas Cromwell só usa as estritamente necessárias, assim como as antigas rainhas “há uma pausa, enquanto ela vira as grandes páginas do seu livro de raiva e põe o dedo na palavra exatamente justa.”
Mas as palavras também servem para esconder, mentir e tergiversar, daí a sua riqueza e poder e deslumbramento “vós sabereis o que queríeis dizer. Eu só sei o que dissestes.” E nessa pequena diferença pode estar uma declaração de amor ou uma condenação à morte.
Muito bom. Vai para a estante de baixo.
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Hilary Mantel
O Livro Negro
Editorial Presença 19,90€